ENTREVISTA

'A indústria tenta boicotar o guia de alimentos', diz responsável técnico pelo documento

Especialista da USP critica ação da Agricultura, que teria saído em defesa dos ultraprocessados

19 setembro 2020 - 11h00Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo
Carlos Augusto Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e um dos criadores do guia alimentar brasileiro
Carlos Augusto Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e um dos criadores do guia alimentar brasileiro - (Foto: Mauro Bellesa/IEA)
Terça da Carne

A tentativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) de alterar o guia alimentar feito pelo Ministério da Saúde para reduzir as críticas aos alimentos ultraprocessados beneficia somente a indústria de alimentos. Essa é a visão de Carlos Augusto Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e responsável técnico pela elaboração do documento, feito pelo Ministério da Saúde em parceria com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, grupo coordenado por Monteiro.

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Leia a seguir os principais trechos da entrevista do especialista ao Estadão.

Como foi a elaboração do guia?
Foram anos de trabalho. Fizemos várias reuniões. Em duas delas, em São Paulo, a gente trouxe de 30 a 40 especialistas de várias instituições do País. Foi o trabalho mais coletivo que já fiz na minha vida. Depois entregamos uma versão para consulta pública, que teve muitas sugestões. Muitas coisas foram incorporadas, ajustadas. Foi um processo com grande participação.

Por que a escolha pela classificação de alimentos por nível de processamento?
Criamos essa classificação em 2009 para fins de estudos. Depois, vimos que podíamos usar essa mesma estrutura para orientar as pessoas. Isso se mostrou interessante porque as pessoas entendem muito mais rapidamente essa divisão do que falar para evitar alguns componentes, como gordura saturada. Essa originalidade foi reproduzida por guias de outros países, como Peru, Equador e Uruguai. Países como Canadá e França adotaram esses princípios também. Mas há um setor que não gosta disso, pois lucra com os alimentos ultraprocessados. Doenças crônicas como obesidade e diabete vêm aumentando muito e a alimentação tem um papel importante nisso. A indústria começou a processar os alimentos para aumentar a duração deles e diversificar a nossa alimentação. A partir de certo momento, ela percebeu que poderia ganhar muito dinheiro com alimentos de baixo custo, que aproveitam componentes de outros alimentos e têm sabor que as pessoas gostam e viciam. A comprovação de que esses alimentos estão associados a maior risco dessas doenças foi mostrada não só em estudos nacionais, mas por pesquisas de países europeus, da Austrália, entre outros.

Como avaliou o documento do Ministério da Agricultura propondo a revisão do guia?
A argumentação é paupérrima, escandalosamente mal feita. Não sei como a indústria conseguiu se aproximar da ministra Tereza Cristina para esse tema porque nem é atribuição desse ministério elaborar o guia. A indústria de alimentos tenta boicotar o guia desde 2014. Um dia antes de ele ser lançado, a Abia (Associação Brasileira de Indústria de Alimentos) teve uma audiência com o então ministro, Arthur Chioro, pedindo a suspensão do guia. Foi cancelada a cerimônia de lançamento, mas o próprio ministro avaliou o documento, percebeu que era superimportante e fez o lançamento posteriormente.

E por que acha que o Ministério da Agricultura decidiu se envolver no tema?
Eu não consigo entender essa antipatia da ministra com o guia. A única coisa de que podem não gostar é da recomendação do guia que pede moderação no consumo de carne. Mas o guia não proíbe o consumo, pelo contrário, diz que é permitido o consumo em uma a cada três refeições. Tem guias alimentares de outros países que são muito mais rígidos. Mas parece que ela comprou a briga da indústria dos ultraprocessados. Com esse documento, ela chama para si o rótulo de negacionista, porque há muitas evidências sobre os malefícios desse tipo de alimento. Ao mesmo tempo, ela cria uma animosidade dentro do governo. Como que o Ministério da Agricultura escreve um documento para o Ministério da Saúde dizendo que um instrumento de política pública dele é o pior do planeta? Isso não é uma postura de quem quer diálogo. Estão ignorando e desrespeitando o Ministério da Saúde.

'Para nós, não existe alimento bom ou ruim'

Para representantes da indústria de alimentos, a revisão do guia brasileiro é necessária pois a classificação utilizada no documento, que divide os alimentos por nível de processamento, simplifica a discussão e cria um conceito de que todos os produtos industrializados são ruins para a saúde.

Em entrevista ao Estadão, executivos da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) afirmaram que a associação de comida processada a um maior risco de obesidade, diabete e outras doenças é equivocada, desconsidera que esses problemas são multifatoriais e a indústria tem feito inovações e alterações em seus processos para reduzir o teor de componentes como sal, açúcar e gordura em suas composições.

“Entendemos que o guia é um documento importante, mas nos opomos ao capítulo 2, que traz a classificação por nível de processamento. Ele coloca todos os alimentos industrializados como ruins. Para nós, não existe alimento bom ou ruim. O que existe é dieta desequilibrada”, afirmou João Dornellas, presidente executivo da Abia.

“O consumo de sal, açúcar e gordura saturada deve ser reduzido, isso é um fato. Mas deve ser reduzido não só do alimento industrializado, mas também da comida do restaurante e da comida feita em casa”, destacou Alexandre Novachi, diretor de assuntos regulatórios e científicos da Abia.

Os executivos mencionam que a indústria tem adotado voluntariamente práticas para melhorar a qualidade nutricional de seus produtos. “Temos um acordo voluntário com o Ministério da Saúde há mais de uma década, anterior a esse guia, que prevê a redução nos nossos produtos de alguns macronutrientes que não devem ser consumidos em exagero. Graças a isso, já tiramos 310 mil toneladas de gordura, 17 mil toneladas de sódio e 144 mil toneladas de açúcar da mesa do brasileiro”, disse o presidente da associação.

Para a entidade, a classificação mais adequada seria a que divide os alimentos de acordo com as funções fisiológicas – por exemplo, energéticos, construtores, reguladores. “É a classificação que costumamos ver naquelas pirâmides alimentares, adotadas por alguns países. Os açúcares e óleos, por exemplo, estão presentes lá em cima, no topo da pirâmide, em pequenas quantidades. Ou seja, o critério deveria ser o equilíbrio”, afirma Dornellas.

O executivo diz que a indústria conta com engenheiros de alimentos para melhorar esses processos e que, assim como todo campo da ciência evolui, a produção alimentar também tem passado por mudanças que deveriam ser consideradas na elaboração de um guia. “Fizemos sugestões para o documento em 2014, mas elas não foram consideradas. Não fomos chamados para a reunião de consolidação da proposta”, relatou Novachi.

“A indústria emprega tecnologia, ciência e inovação para sempre mudar o que pode ser melhorado. A gente não quer impor nada, mas quer ser ouvido. Temos especialistas que estudam alimentos o dia inteiro, é preciso ouvir vozes diferentes”, diz Dornellas.

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