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VARIEDADES

Como Churchill combateu a barbárie com palavras

'Um verdadeiro líder pode ajudar a população a resistir ao trauma prolongado', afirma ao Estadão o escritor e jornalista Erik Larson, autor de 'O Esplêndido e o Vil', que narra a resistência de Churchill à blitz alemã entre 1940 e 1941

6 fevereiro 2021 - 08h30
Destroços da biblioteca particular da Holland House, casa do século 17 do Lorde Ilchester, em Kensington, Londres, após um bombardeio alemão em 23 de outubro de 1940
Destroços da biblioteca particular da Holland House, casa do século 17 do Lorde Ilchester, em Kensington, Londres, após um bombardeio alemão em 23 de outubro de 1940 - (Foto: Hulton Archive/Editora Intrínseca)

Quando Winston Churchill assumiu o cargo de primeiro-ministro britânico, em maio de 1940, a situação da 2ª Guerra Mundial era delicada: a Alemanha havia invadido a Noruega, a Bélgica, a Holanda e Luxemburgo, e se preparava para ocupar a França. O bombardeio aéreo que devastou Roterdã em 14 de maio daquele ano levou à rendição dos Países Baixos e soava como um prelúdio do que a força aérea alemã pretendia fazer na Inglaterra. Nessa "atmosfera de medo real" - conforme escreveu em seu diário o secretário Harold Nicolson, do Ministério da Informação -, Churchill ascendeu ao poder e teve de usar a principal arma à sua disposição para se defender do arsenal de Hitler: a palavra.

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É o que descreve em detalhes o livro O Esplêndido e o Vil, do jornalista norte-americano Erik Larson. O autor se debruçou sobre diários, cartas, discursos e papéis avulsos para narrar o período de um ano e meio entre a ascensão de Churchill e a entrada dos Estados Unidos na guerra, em dezembro de 1941, ponto de virada do conflito.

Boa parte da narrativa compreende a blitz aérea da Alemanha contra o Reino Unido, que levou a mais de 44 mil mortes de civis. Enquanto isso, Hitler pressionava Churchill a assinar um acordo de paz, o que parecia a muitos a única alternativa restante sem o apoio dos EUA.

Considerar óbvia a irredutibilidade moral de Churchill, que se negava a barganhar com o nazismo, não passa de anacronismo. Larson mostra não apenas que ele era criticado por não negociar, mas que praticamente ninguém concebia a ideia de que Hitler poderia ser vencido. Essa era a principal razão pela qual os EUA se limitavam a observar a distância. Em maio de 1940, 93% dos americanos se opunham à entrada do país na guerra e o presidente Franklin Roosevelt, que queria se reeleger, prometeu não se envolver.

A convicção da iminente vitória alemã era tamanha que o secretário Nicolson chegou a fazer um pacto com sua mulher, a escritora Vita Sackville-West, de que cometeriam suicídio para evitar serem capturados pelos alemães. O próprio Churchill carregava uma cápsula de cianeto na tampa de sua caneta-tinteiro. Nesse contexto, seus discursos eram a única arma para motivar os ingleses, desmoralizar os alemães e convencer os americanos a colaborar com o que Churchill chamava de "a Boa Causa".

Do memorável "Não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor" ao inquietante "Se a história antiga desta nossa ilha deve acabar enfim, que só acabe quando cada um de nós estiver no chão, afogando-nos no sangue deles", Larson transcreve trechos inteiros de discursos de Churchill. Para cada ataque alemão, havia uma bomba equivalente do arsenal de palavras do primeiro-ministro. À época, ele já era reconhecido como um brilhante orador, e não é por acaso que, em 1953, foi galardoado com o prêmio Nobel de Literatura "por sua maestria na descrição histórica e biográfica, assim como sua brilhante oratória na defesa dos valores humanos".

O Esplêndido e o Vil evidencia como esses pronunciamentos foram capazes de alterar aos poucos a opinião pública e, com isso, os rumos da História. Se o atentado japonês na base naval de Pearl Harbor, entre as ondas do Havaí, foi a gota dágua que restava para a entrada dos EUA na guerra, o resto do copo havia sido preenchido pelas explosivas palavras transmitidas por Churchill pelas ondas do rádio. Larson respondeu às seguintes perguntas do Estadão por e-mail.

Em que medida os discursos de Churchill influenciaram os eventos da guerra?

Para mim, o livro é uma história pessoal sobre como Churchill, sua família e seus conselheiros mais próximos conseguiram resistir à primeira e mais relevante blitz aérea alemã. Eu quis usar essa experiência para capturar a história maior de como a Inglaterra como um todo sobreviveu a isso. E aí os discursos de Churchill foram vitais. Ele começava fornecendo avaliações sóbrias dos eventos, mas então seguia com causas reais para o otimismo e, invariavelmente, encerrava com virtuosos floreios que elevavam o moral das pessoas e faziam todos se sentirem no mesmo barco. Como ele próprio disse, ele não deu coragem à Inglaterra; ele ajudou as pessoas a encontrar sua própria coragem.

Guerras são lutadas com armas, mas é possível dizer que Churchill usou suas habilidades oratórias para contra-atacar bombas com palavras?

Isso se deu porque seus pronunciamentos eram tão poderosos e tão belamente escritos, ou melhor, ditados. O que é realmente miraculoso sobre Churchill era sua habilidade de compor discursos intrincados e detalhados na correria, ditando, tipicamente enquanto andava ao redor de uma sala com um charuto na boca. Ajudava o fato de ele ser um escritor prolífico e um ávido leitor, e ter uma grande noção da história inglesa e mundial. Isso era importante, pois lhe dava uma perspectiva ampla sobre o que estava se passando. Ele entendia que o Império Britânico havia existido por um período de tempo muito grande e duraria muito tempo ainda. Seu truque era persuadir o público - uma tarefa na qual ele foi muito bem-sucedido.

A História não admite "se", mas você consegue imaginar como a guerra poderia ter sido sem essas habilidades singulares de Churchill?

Eu tento evitar especular sobre a História! Dito isso, eu acho provável que outro alguém teria desempenhado esse papel caso Churchill não tivesse existido. Mas eu não posso imaginar alguém fazendo isso com tanta cor, humor, brio - e álcool!

Que lições sobre liderança Churchill oferece aos governantes lidando com a crise da pandemia de covid-19?

Eu creio que o livro seja útil ao mostrar como um verdadeiro líder pode ajudar a população a resistir ao trauma prolongado. Uma grande parte disso foi a habilidade de Churchill de expressar compaixão e empatia, de modo que as pessoas sentiam que ele compartilhava de seus medos e sofrimentos. Isso é vital. Ele também falava ao público com franqueza, porque ele entendia que as pessoas sabiam quão séria era a situação. Dizer o contrário provocaria uma dissonância entre essa fantasia e a realidade objetiva que teria erodido o moral das pessoas. Em contraste, nós tivemos Trump, que nunca ofereceu compaixão ou empatia, preferindo negar a severidade e até a existência da pandemia, e de alguma forma conseguindo tornar até o simples ato de usar uma máscara em um gesto político divisor - com resultados infelizes, porém previsíveis.

Como foi o processo de pesquisa e por que você escolheu enfatizar e citar trechos de diários, cartas, telegramas e recados pessoais para recriar a atmosfera daqueles dias?

Para escrever o tipo de história que eu gosto de contar, preciso de todas essas coisas. Elas oferecem os vislumbres mais precisos e vívidos sobre como a vida realmente era vivida. E também servem como ferramenta narrativa para levar a história adiante. Alguns bons telegramas direto ao ponto ajudam a acelerar o ritmo. Sobre o porquê de citar certos documentos: sigo meus instintos. Se um diário parece particularmente vívido e cheio de insights, vou citá-lo. Por exemplo, o diário de Mary Churchill. Para mim, o diário faz todo o livro, ao oferecer uma ideia tão rica de como os Churchills realmente resistiram àquele período. Ela foi uma mulher tão inteligente e articulada, seu diário não apenas nos dá vislumbres das grandes questões da guerra e da política, mas também sobre a vida de uma garota de 17 anos durante essa época. Ela foi perspicaz ao sentir o peso da guerra e teve compaixão pelos que mais sofreram, mas também queria se divertir! E ela o fez bastante. O que nos lembra que, mesmo nos piores tempos, ainda é possível ter experiências alegres.

Sem diários e correspondência impressa, será mais difícil documentar os nossos dias desse jeito intimista que você retratou aquela época?

É difícil dizer. Certamente as pessoas não escrevem mais o tipo de cartas que costumavam e esse era um recurso poderoso para compreender o passado. Mas nós temos tuítes, postagens no Facebook e em blogs, podcasts em abundância e uma pilha inacabável de fotografias de tudo - especialmente de gatos. Na verdade, sinto que tuítes poderiam ser particularmente preciosos para os futuros historiadores. De certa forma, são os telegramas de hoje. É interessante que os Arquivos Nacionais dos EUA agora armazenem grandes quantidades de tuítes, o que é particularmente importante para este momento. Ninguém que tentar, no futuro, escrever sobre a era Trump será capaz de fazê-lo sem antes se debruçar sobre milhares e milhares de seus tuítes de sanidade questionável. Suspeito que os futuros historiadores vão lê-los e rir sobre o quão ridículos e patéticos esses tuítes eram.

O ESPLÊNDIDO E O VIL
Autor: Erik Larson
Trad.: Rosiane C. de Freitas e Rogério Galindo
Ed.: Intrínseca
(324 páginas, R$ 59,90, R$ 39,90 o e-book)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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