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VARIEDADES

'O Dilema das Redes' mostra os problemas de consciência dos seus criadores

Em O Dilema das Redes, de Jeff Orlowski e em exibição na Netflix, as redes sociais são colocadas no paredão

19 setembro 2020 - 07h00
Cenas do documentário 'O Dilema das Redes'
Cenas do documentário 'O Dilema das Redes' - (Foto: Netflix)
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Criadas a pretexto de aproximar as pessoas, elas agora são acusadas pela extrema polarização política, depressão de adolescentes, como divulgadoras de fake news, ameaças à democracia, controle das pessoas através de algoritmos e outras coisinhas mais. Em O Dilema das Redes, de Jeff Orlowski e em exibição na Netflix, as redes sociais são colocadas no paredão. E pelas próprias pessoas que as criaram ou ajudaram a desenvolvê-las.

Esse "elenco" do filme talvez seja seu maior trunfo. Para falar sobre os efeitos nocivos das redes sociais, não foram convocados sociólogos ou filósofos especialistas em ética, mas pessoas que de fato as conhecem por dentro. Esses geninhos do Vale do Silício sabem muito bem do seu poder de sedução (ajudaram a lapidá-lo), do alcance obtido e dos malefícios que trazem. Hoje, mostram problemas de consciência. E não sem motivo. As redes, tais como as conhecemos, transformaram-se em ameaça à própria sobrevivência da espécie - é o diagnóstico mais ou menos generalizado desses jovens talentosos, hoje trabalhando em empresas próprias ou ONGs.

Um deles, talvez o astro do filme, Tristan Harris, antigo executivo da gigante Google, não economiza palavras: "Quando você olha ao redor, sente que o mundo está enlouquecendo". Não fica apenas na impressão. Tristan explica, de maneira muito didática, como os algoritmos captam dados dos clientes e passam a direcioná-los a seus nichos de preferências. E de consumo, pois a questão desses serviços, tidos como gratuitos, é como monetizá-los. Ou seja, como ganhar contêineres de dinheiro, que transformaram as empresas hi-tech nas mais poderosas do capitalismo digital.

Há contra-argumentos. Um deles diz que as redes sociais seriam apenas um choque tecnológico a mais, como foram, em seu tempo, o telégrafo, o rádio, o telefone, o cinema, a televisão, etc. A humanidade sobreviveu a eles. Então, bastaria nos segurarmos na cadeira e esperarmos a onda passar. Ou ser substituída por outra, ainda não imaginável.

A resposta a esse argumento está numa questão de escala. Nunca antes carregamos no bolso aparelhinhos como smartphones, acessíveis em qualquer lugar e a qualquer hora do dia e da noite, apitando a todo momento notificações da chegada de uma mensagem de WhatsApp ou de um like numa postagem de Facebook. Passamos a praticar essa servidão voluntária e trazemos a corrente em volta do pescoço 24 horas por dia, sete dias por semana.

Nesse aspecto, reside o tal dilema das redes. O que fazer com elas? Deixá-las operar à vontade, pois seu livre exercício reside no livre desejo dos usuários? Mas serão mesmo livres? Um dos entrevistados se lembra de que hoje a palavra "usuário" só é utilizado em dois casos: para adictos em drogas e viciados em internet. Ambos desfrutam de uma liberdade apenas ilusória, pois, uma vez que se entra no jogo, não há mais poder de escolha.

Drogas pesadas e redes sociais viciantes se apoiam em fraquezas humanas. No caso das redes, a necessidade primal de aprovação de um ser humano por outras pessoas. O reconhecimento pelo Outro como necessidade humana fundamental foi teorizado por um filósofo como Hegel e por um psicanalista como Freud. Faz parte da matriz psicológica da espécie. Desse modo, a pessoa que inventou o "like" teve um vislumbre de gênio. Criou um signo de reconhecimento e aprovação ao alcance de um toque na tela. Nada que envolva trabalho ou elaboração intelectual. Apenas isso: "Gostei". O que se traduz em: "Gosto de você e o reconheço como parte do meu grupo".

O contrário também é verdadeiro. Daí o número de adolescentes (e mesmo adultos) que se deprimem quando suas postagens não alcançam a repercussão desejada. Para não falar do pior, quando são alvo de bullying e "cancelamentos", essa execrável prática das redes sociais aplicada aos que não partilham de determinado modo de pensar. A pressão psicológica pode ser devastadora nesses casos e já foram registrados casos de suicídios de "cancelados" por motivos diversos, seja uma opinião destoante do grupo ou a exposição de fotos ou vídeos comprometedores.

Mas como disciplinar esse ambiente apoiado em necessidades tão primais? Através de uma legislação restritiva? Controles e limitações? Nada mais difícil de implementar numa época em que qualquer limite é logo tachado de censura ou restrição à liberdade.

Se, no plano individual, as consequências são tão graves, o que dizer do âmbito coletivo? As redes são responsabilizadas pela criação de culturas paralelas, sem relação com a realidade. Terraplanistas, grupos contrários a vacinas, céticos em relação ao jornalismo profissional e à ciência encontram nas redes seus iguais e formam grupos de influência. Nesse hábitat de vale-tudo e fake news, alteram disputas eleitorais e alçam incapazes ao poder. Ainda que de passagem, são citadas eleições de populistas de direita influenciadas pelas redes, como as de Trump e Bolsonaro. A votação em favor do Brexit teve forte manipulação das redes sociais e a interferência russa sobre a eleição americana também entra nessa pauta. "Fake news têm seis vezes mais impacto do que notícias verdadeiras", constata um dos entrevistados.

Mas, ainda uma vez, como defender-se? Não há respostas prontas. Tão agudo na crítica e no diagnóstico dos efeitos destrutivos das redes, o filme parece tímido ao apontar soluções. Os próprios especialistas repetem fórmulas já conhecidas. O que fazer com os filhos, por exemplo? Tentar limitar a entrada nas redes até determinada idade. Restringir o tempo de acesso diário. Não permitir celulares na hora de dormir. E, sobretudo, orientação, muita conversa e recomendação de antídotos eficazes - a leitura, o contato com alternativas confiáveis de informação, o diálogo com pessoas que pensam diferente.

Em outras palavras, como em outros casos, neste também é mais fácil avaliar os danos que preveni-los ou remediá-los. As saídas parecem sempre individuais. Como diz Jaron Lanier, músico e cientista de computação, com jeitão de hippie velho e especializado em realidade virtual: "Desligue o celular e vá ver o dia de sol lá fora". É isso. Mas saídas individuais não são soluções. O documentário, em que pese suas limitações, é uma advertência de impacto. As redes sociais, do jeito que são, e sem controle, se transformaram num dos maiores desafios da nossa época. Merecem toda a atenção.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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