
A sociedade está mudando e a legislação tem evoluído para acompanhar essas transformações. Nem sempre na mesma velocidade dos fatos, mas este processo segue sendo contínuo. E desde o final do ano passado a sociedade brasileira tem convivido com um fato, o registro da primeira união poliafetiva entre três mulheres. Esse foi o pano de fundo para o debate "Poliamor – Para entender os novos conceitos de família", ocorrido na Casa do Saber Rio. Fernanda de Freitas Leitão - uma das palestrantes do encontro - é a tabeliã do 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, o responsável pelo registro da união poliafetiva em questão. Na conversa, ela destacou que, assim como a homoafetiva, a união poliafetiva vai ser reconhecida juridicamente: “É uma questão de tempo, só não sabemos quanto. Todo o Direito de Família brasileiro está fundamentado por um grande valor: os laços de afeto. E é disso que estamos falando, afeto. O Poder Judiciário tem se orientado dessa forma. Os tribunais brasileiros ainda não criaram uma jurisprudência específica para reconhecer ou não como entidade familiar as uniões poliafetivas. Para este reconhecimento de união, tomei como base o princípio basilar do atual Direito de Família, que é o princípio da afetividade, bem como os fundamentos da Suprema Corte para reconhecer legalmente casais homossexuais”, explica a tabeliã do 15º Ofício de Notas, Fernanda de Freitas Leitão, atuante também na área de mediação e de planejamento sucessório. Gustavo Tepedino, professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), afirma que os direitos civis estão em terrenos morais que se associam ao controle social. Mesmo em relação às uniões homoafetivas, o que existe, até o presente momento, foi o reconhecimento de tais uniões pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Não há ainda no Brasil nenhuma lei que garanta a união ou casamento homoafetivo. De modo que os argumentos a favor e contra dependerão da interpretação dos juízes diante de casos concretos.

Sobre a união poliafetiva, Gustavo Tepedino considera que "de uma maneira simplificada, (a união) é um processo evolutivo natural, como tudo no direito". E continua: "é um caso de direito de família com consensos sociais muito arraigados, e essa alteração, essa evolução, é dramática. Implica sofrimento por muitas gerações", constata o professor de Direito Civil.
No campo das artes, o assunto poliamor não é novidade. ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’ é um dos romances mais conhecidos do escritor brasileiro Jorge Amado, publicado em 1966, em plena ditadura militar e seus preceitos da tradição, família e propriedade. A mesma história foi transportada para o cinema dez anos depois e readaptada no formato de minissérie em 1998. O documentarista João Jardim, responsável pela série 'Amores Livres', do canal GNT, defendeu que a arte tem o papel de problematizar o assunto e deixar que a sociedade tire suas próprias conclusões. Durante o debate na Casa do Saber, Jardim relembrou que a promiscuidade ainda é erroneamente atrelada ao tema e que isso gera constrangimento por parte dos chamados "trisais" (casais com mais de dois indivíduos), que acabam optando por se reservar.
Para João Jardim, esse novo formato de relacionamento está diretamente ligado ao empoderamento feminino, cada vez mais forte na contemporaneidade. "Uma questão que talvez seja a mais importante de todas é o protagonismo feminino. Hoje em dia a mulher está interessada em ter relações mais honestas, podendo desenvolver diferentes tipos de expressões da sua sexualidade, seja num relacionamento bissexual, homossexual ou até poliafetivo".
Evolução do conceito de família - O Código Civil de 1916 admitia unicamente o casamento civil como elemento formador da família, muito embora doutrina e jurisprudência já passassem a admitir a união estável. A Lei nº 6.515, de 1977, promulgada após 20 anos de luta, revogou o conceito da indissolubilidade do casamento civil, apagando o desquite do ordenamento jurídico brasileiro e instituindo o divórcio. O artigo 226 da Constituição Federal de 1988 trouxe nova luz ao direito de família admitindo a proteção do Estado aos que optaram pela união estável. Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF), por votação unânime, reconheceu o direito dos casais homoafetivos, atribuindo as mesmas regras e consequências oriundas da união estável heterossexual ou heteroafetiva. Em todos esses avanços se defendia a família originada em duas pessoas desimpedidas e, mais recentemente, sem distinção de sexo. Agora, escrituras reconhecendo uniões poliafetivas como família voltam a exigir da Justiça e da sociedade um olhar sobre o novo modelo de compartilhamento de vida.
Vitórias legais - A oficialização da primeira união poliafetiva só de mulheres no Brasil já rendeu um importante reconhecimento deste modelo de família. Uma das companheiras conseguiu inserir as demais no plano de saúde de sua empresa, ato somente possível por conta do registro de união estável lavrada pelo 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, em outubro do ano passado. A nova família - formada por uma empresária (34), uma dentista (32) e uma gerente administrativa (34) - quer agora em 2016 gerar um filho, que terá os três sobrenomes na certidão, tratando-se, portanto, de um registro mulitiparental.
