MPF pede que União indenize em R$ 5 milhões por ataques à memória de João Cândido
Ação aponta que manifestações da Marinha violam anistia legal e ferem direito à memória e à igualdade racial
POLÍTICAO Ministério Público Federal (MPF) acionou a Justiça e pediu a condenação da União ao pagamento de R$ 5 milhões por danos morais coletivos, em razão de manifestações oficiais da Marinha do Brasil que, segundo o órgão, atacam a memória do marinheiro João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata. Para o MPF, declarações recentes da Força Naval violam a anistia concedida ao ex-marinheiro por lei federal e afrontam direitos constitucionais, como a preservação da memória histórica e a igualdade racial.
A ação tem como pano de fundo uma carta enviada em 2024 pelo comandante da Marinha, almirante Marcos Olsen, ao presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, Aliel Machado (PV-PR). No documento, o comandante explicou os motivos pelos quais a Força Naval se posicionava contra um projeto de lei que propunha a inclusão de João Cândido no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
Segundo o MPF, o conteúdo da carta extrapola uma simples divergência historiográfica e representa a reafirmação de um juízo oficial de reprovação já superado pela Lei nº 11.756/2008, que concedeu anistia póstuma e definitiva a João Cândido e aos demais participantes da Revolta da Chibata.
“Apesar da Lei 11.756/2008, a Marinha disseminou ataque à memória de João Cândido, cuja materialização reside na manifestação de repúdio à tentativa de transformá-lo em herói nacional e em manifestações posteriores”, sustenta o MPF na ação. Para o órgão, o objetivo do processo é garantir o direito à memória e promover medidas de reparação em favor do que classifica como um herói nacional.
Após o posicionamento público do comandante da Marinha, em abril de 2024, o MPF passou a questionar formalmente a instituição. Em resposta, a Força Naval encaminhou ofícios administrativos reafirmando que João Cândido teria cometido atos de indisciplina e violência, com base no que chamou de “fatos históricos”.
Posteriormente, ao ser alvo de recomendação para que se abstivesse de novas manifestações sobre o tema, a Marinha afirmou não identificar qualquer irregularidade, classificando suas declarações como uma “perspectiva histórica”. Para o MPF, no entanto, essas respostas demonstram a continuidade de uma postura institucional que esvazia os efeitos da anistia concedida por lei.
Na avaliação do órgão, a legislação impede que o próprio Estado mantenha juízos oficiais de reprovação contra pessoas anistiadas. Ao sustentar manifestações que desqualificam João Cândido, a Marinha estaria violando princípios como a dignidade da pessoa humana, a igualdade racial e o direito à memória, entendido como parte do patrimônio cultural brasileiro. Esse conjunto de fatores, segundo o MPF, configura dano moral coletivo.
“A anistia conferida pela Lei nº 11.756/2008 não consiste em meras palavras ao vento. Trata-se de um reforço atual, concreto e contemporâneo da condição de anistiado de João Cândido Felisberto e de seus companheiros”, afirma o MPF. O órgão sustenta ainda que a reparação é necessária para preservar a memória do chamado Almirante Negro, de seus familiares, da população negra e da sociedade brasileira como um todo.
Procurada para informar se a União já foi formalmente citada no processo e qual será a linha de defesa, a Advocacia-Geral da União (AGU) ainda não se manifestou.
Almirante Negro e a Revolta da Chibata
Conhecido como Almirante Negro, João Cândido Felisberto liderou a Revolta da Chibata, em 1910, no Rio de Janeiro. O movimento foi protagonizado por marinheiros, majoritariamente negros, que se rebelaram contra a aplicação de castigos físicos dentro da Marinha, prática que persistia mesmo após a abolição da escravidão.
João Cândido ingressou na Marinha aos 14 anos, em 1895, período em que o recrutamento forçado era comum. Permaneceu na Força Naval por 15 anos e, segundo registros funcionais, foi castigado ao menos nove vezes, preso em celas solitárias “a pão e água” e rebaixado duas vezes da patente de cabo para marinheiro.
Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria
O Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, também conhecido como Livro de Aço, reúne nomes considerados fundamentais para a história do Brasil. O documento está sob guarda do Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e inclui personalidades como Tiradentes, Chico Mendes e Machado de Assis.