Agência Brasil | 15 de dezembro de 2025 - 14h40

Lei que amplia assistência a mulheres com alcoolismo reforça luta contra violência de gênero

Novo marco para políticas públicas destaca vulnerabilidade feminina ao álcool e importância de atendimento especializado

SAÚDE
Reuniões femininas de apoio ao alcoolismo crescem no Brasil e são referência para políticas públicas mais acolhedoras - (Foto: Alcóolicos Anônimos/Divulgação)

Após percorrer um longo caminho de recuperação da dependência de álcool, a curitibana *Lúcia só compreendeu que havia sofrido abusos sexuais pelo próprio marido quando começou a se tratar em grupos de apoio. Experiências como essa, comuns entre mulheres que lutam contra o alcoolismo, ganharam um novo capítulo nas políticas públicas brasileiras com a sanção da Lei 15.281, que estabelece assistência multiprofissional específica para mulheres usuárias e dependentes alcoólicas.

No Brasil, mais de 7% das mulheres adultas têm diagnóstico de alcoolismo, segundo dados compilados por especialistas. Entre as consequências mais graves dessa realidade estão não apenas os efeitos físicos da dependência, mas também a exposição aumentada a situações de violência e abuso, como foi relatado por Lúcia em entrevista à Agência Brasil.

A nova legislação sancionada esta semana pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva determina que estados e municípios implementem serviços de apoio especializados para mulheres que enfrentam dependência de álcool. A proposta é criar uma rede de atendimento com profissionais capacitados para lidar com as complexidades específicas da condição no universo feminino.

A psiquiatra Natalia Haddad, vicepresidente do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), ressalta que a medida chega em um momento em que as mortes associadas ao consumo de álcool entre mulheres cresceram 27% entre 2010 e 2023 — um dado que exige respostas mais estruturadas por parte do sistema de saúde.

“É essencial que a lei venha acompanhada de um plano de implementação claro, com prazos e ações definidas, porque as necessidades de apoio variam conforme a situação de vida de cada mulher”, pondera a especialista.

Além das diferenças biológicas que influenciam o metabolismo do álcool — como menor quantidade de água no corpo e menor atividade de enzimas hepáticas — Haddad destaca fatores sociais que agravam o impacto do alcoolismo entre mulheres.

“Elas frequentemente enfrentam jornadas duplas ou triplas, conciliando carreira com responsabilidades domésticas e cuidados familiares”, explica, o que pode contribuir para dificuldades em buscar tratamento e apoio.

Outro aspecto preocupante é a desigualdade racial no impacto da dependência. Segundo a psiquiatra, cerca de 70% das mortes de mulheres relacionadas ao álcool ocorrem entre pretas e pardas, indicando que o problema também está enraizado em desigualdades sociais que precisam ser consideradas nas respostas das políticas públicas.

Especialistas ouvidos pela reportagem ressaltam que o tratamento de mulheres com alcoolismo deve considerar contextos diversos — desde adolescentes a gestantes — e prever atendimento específico para cada grupo, incluindo o reconhecimento de situações de violência ou abuso associadas ao uso de álcool.

Nesse sentido, grupos de apoio como o Alcoólicos Anônimos (AA) desempenham papel importante ao proporcionar espaços seguros para expressão de experiências difíceis sem julgamentos. Para muitas mulheres, grupos exclusivos têm sido essenciais no processo de recuperação.

“Kika* encontrou nas salas femininas do AA um ambiente onde pôde ouvir e reconhecer sua própria história nas falas de outras,” conta uma das participantes, refletindo o impacto coletivo e solidário desse tipo de apoio.

Sandra*, que está há 24 anos sem beber, lembra que o preconceito ainda persiste, inclusive no seio familiar: “A realidade de muitas mulheres é de julgamentos e estigmas, até mesmo por quem deveria apoiar”, relata.

A irmandade do AA no Brasil registrou um crescimento significativo da participação feminina desde a pandemia. Atualmente, são realizadas 65 reuniões femininas semanais, e cerca de 6,5 mil mulheres já buscaram apoio por meio da iniciativa Colcha de Retalhos, que promove atividades com foco em mulheres alcoolistas e estimula visibilidade sobre o tema.

A psicóloga Jaira Adamczyk, pesquisadora em tratamento e prevenção à dependência química, afirma que muitos relatos apontam para o alívio emocional e cognitivo que esses espaços proporcionam: “Em reuniões só para mulheres, elas puderam expressar sentimentos, dores e até abusos sofridos em função do uso compulsivo do álcool”.

A Lei 15.281 estabelece a necessidade de implementação de programas de assistência multiprofissional, que incluem atendimento médico, psicológico e suporte social específico para mulheres dependentes de álcool. A expectativa é que essa nova estrutura permita não apenas tratar a dependência, mas também enfrentar suas causas profundas, como violência de gênero, desigualdade e estigma social.

* Os nomes das mulheres ouvidas foram alterados para preservar o anonimato.