Filme 'Cyclone' resgata a trajetória esquecida de Daisy Pontes, jovem modernista apagada da história
Longa estrelado por Luiza Mariani revive a única mulher do diário da garçonnière de Oswald de Andrade; estreia marca 20 anos de dedicação à personagem
CULTURAApós duas décadas de pesquisa e dedicação, a atriz Luiza Mariani estreia nos cinemas o longa Cyclone, que traz à tona a história pouco conhecida de Maria de Lourdes Castro Pontes — ou Daisy Pontes, apelidada de Miss Cyclone pelos modernistas. A jovem de apenas 19 anos foi a única mulher a participar do diário coletivo da garçonnière de Oswald de Andrade, marco do modernismo paulistano. Seu nome, porém, foi apagado da história oficial, até agora.
Dirigido por Flávia Castro, com roteiro assinado por Rita Piffer e pela própria Mariani, o filme estreia no circuito comercial após passagens por festivais internacionais como Xangai, Munique e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, onde foi exibido no histórico palco do Theatro Municipal.
O primeiro contato de Luiza com a história de Daisy ocorreu em 2005, ao ganhar de presente o livro O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo, publicado pela Biblioteca Azul (Globo Livros), que traz o diário da garçonnière. Em 2006, a atriz levou a história ao teatro e desde então manteve viva a vontade de transformá-la em cinema.
“Fiquei apaixonada por essa personagem que morre tão jovem, mas que teve um papel fundamental no movimento modernista”, afirmou Luiza ao Estadão.
No filme, Daisy é retratada como uma dramaturga obstinada que luta por reconhecimento autoral, busca uma bolsa em Paris e tenta se emancipar da sombra de seu amante e mentor — representado no longa pelo personagem fictício Heitor Gamba, interpretado por Eduardo Moscovis. A gravidez não planejada, porém, muda o rumo da trajetória da jovem escritora.
Miss Cyclone morreu em decorrência de um aborto clandestino, deixando para trás apenas um diário — hoje custodiado pela Unicamp — e manuscritos que Oswald de Andrade admitiu ter perdido ao longo da vida. Com tantos vazios, a construção da personagem para o cinema exigiu liberdade criativa.
Uma das principais escolhas do roteiro foi tirar Oswald de cena. Em seu lugar, surgiu Heitor Gamba, uma síntese de vários homens e artistas da época. A personagem Daisy também aparece mais velha, o que permite explorar uma versão possível de quem ela poderia ter sido, caso tivesse sobrevivido.
“A gente não sabe quem ela seria. Será que era uma gênia literária? Será que não? Isso nos deu liberdade para imaginar uma Daisy mais madura”, disse a roteirista Rita Piffer.
A ambientação do filme tem papel crucial. A cidade de São Paulo aparece em destaque, não apenas como cenário, mas como personagem. O Theatro Municipal, os trilhos dos bondes e a sonoridade industrial das ruas do Brás — onde Daisy vive como operária e trabalha numa gráfica anarquista — ajudam a construir uma cidade em ebulição, espelhando os conflitos internos da protagonista.
A trilha sonora, marcada pelos ruídos da cidade, trens e impressoras, aproxima o espectador do universo caótico e vibrante da São Paulo dos anos 1920.
Cyclone não é apenas um filme sobre uma jovem modernista esquecida. É também um manifesto sobre as mulheres silenciadas na história da arte e da literatura. Ao assumir para si a missão de resgatar a trajetória de Daisy Pontes, Luiza Mariani joga luz sobre o papel ativo e criativo que muitas mulheres desempenharam, mas tiveram negado seu lugar nos registros oficiais.
A história de Cyclone, marcada por talento, paixão e uma morte precoce, ganha agora nova vida no cinema — com direito a uma protagonista que não se contenta em ser nota de rodapé, mas quer ocupar o centro da cena.