"O Agente Secreto" provoca debate nacional e divide opiniões sobre memória e narrativa
Novo filme de Kleber Mendonça Filho chega forte à temporada de premiações e desperta discussões sobre ditadura, linguagem e identidade brasileira
CINEMAAntes mesmo de estrear oficialmente, O Agente Secreto, novo filme de Kleber Mendonça Filho, já havia provocado debates que ultrapassam as bolhas cinéfilas. A obra venceu dois prêmios em Cannes, percorreu festivais nacionais e internacionais, transformou Tânia Maria em revelação e agora chega ao circuito impulsionada pela disputa do Oscar 2026. Mas a mobilização em torno do longa está longe de ser unânime — e é justamente essa pluralidade que amplia seu impacto cultural.
A produção estrelada por Wagner Moura se passa no Recife de 1977 e investiga uma cidade marcada pela perda da memória coletiva. No centro da trama, Marcelo, professor universitário, retorna à capital pernambucana para se reconectar com sua própria história, mas logo percebe que o passado não o deixou para trás. A narrativa, contudo, vai além do drama pessoal: toca na relação entre autoritarismo, esquecimento e os limites da própria representação histórica no cinema brasileiro.
Entre intelectuais, uma das críticas mais recorrentes é a suposta suavidade do filme ao retratar a repressão militar. Alguns esperavam uma abordagem mais direta diante do atual cenário de revisão histórica. O professor e ex-ministro Renato Janine Ribeiro elogiou a recriação de época, mas observou lacunas no enfrentamento explícito da ditadura.
“Para quem não tem boa formação histórica, algo fica faltando”, disse ele ao Estadão. Para Janine, a violência do regime aparece diluída, mais representada por empresários interessados em destruir uma pesquisa científica do que pela repressão estatal em si.
Outros, no entanto, veem justamente nessa ambiguidade um ponto forte. O psicanalista Sérgio Telles destaca que o filme reflete tanto os anos 1970 quanto o Brasil atual, atravessado por desigualdade, corrupção, preconceito e disputas simbólicas. “É nosso retrato sem retoques, no qual é duro se reconhecer”, afirma.
Para o crítico Luiz Zanin Oricchio, a ambivalência e o uso de elipses são aspectos centrais da força narrativa do longa: uma obra que instiga, sem entregar explicações prontas.
Outro elemento que divide opiniões é a amplitude temática. Ao chegar ao prédio dos exilados de Dona Sebastiana, Marcelo encontra personagens vindos de diferentes contextos, como refugiados angolanos, vítimas de violência doméstica e jovens expulsos de casa. Enquanto uns veem riqueza histórica e política ao inserir Recife como cenário multifacetado, outros consideram digressão ou dispersão narrativa.
Há, ainda, o humor de Dona Sebastiana, os mitos urbanos recifenses — como a Perna Cabeluda —, buscas por documentos, tensões familiares e a própria energia do Carnaval. Para parte do público, esse conjunto amplia a experiência; para outros, enfraquece o foco.
Janine aponta que uma fala explicativa da personagem de Maria Fernanda Cândido surge como elemento externo à trama, algo que o incomodou. Mas reconhece que Mendonça Filho permanece fiel à tradição de filmes políticos que denunciam a força destrutiva do capital, como fez em Aquarius e Bacurau.
O jornalista Eugenio Bucci, por sua vez, argumenta que o suposto excesso é justamente o que encanta. “Nem tudo é explicado didaticamente, mas tudo flui magistralmente”, escreve, ao recomendar a experiência no cinema.
O longo tempo de tela — 2h40 — também integra o discurso da obra. Ele atua como dispositivo narrativo, acumulando tensões afetivas e políticas e expondo o desgaste da memória, representado pelas cientistas Flávia e Daniela. Para Telles, preservar e revisitar traumas históricos é fundamental para a identidade do país.
Janine destaca outro ponto: o papel da ciência na trama, especialmente pela centralidade da pesquisa acadêmica. Ex-presidente da SBPC, ele celebra o destaque dado ao conhecimento — tanto às ciências exatas quanto às humanas.
A diversidade de interpretações revela um país que ainda disputa sua memória recente e vê no cinema uma ferramenta para compreender as próprias contradições. Para a produtora Emilie Lesclaux, o grande número de espectadores — 800 mil em duas semanas — mostra que o filme está cumprindo seu papel.
Kleber Mendonça Filho também celebra a repercussão. “O Agente Secreto já faz parte do fluxo contínuo da cultura no Brasil. Vê-lo tão vivo me dá sensação de trabalho bem feito”, afirmou.
No fim, o filme opera como espelho e como ferida: provoca reflexão, desconforto e diálogo — exatamente como grandes obras costumam fazer.