Audiência discute moradia indígena em Campo Grande e revela desafios na Aldeia Marçal
Evento reúne lideranças, moradores e poder público para tratar da regularização fundiária e habitação digna
DIREITOS INDÍGENASA quarta audiência pública promovida pela vereadora Luiza Ribeiro sobre moradia indígena aconteceu na Aldeia Marçal de Souza, em Campo Grande, um território simbólico por ser reconhecido como a primeira aldeia urbana do Brasil. O encontro reuniu lideranças tradicionais, representantes do poder público e moradores da comunidade para debater temas urgentes como regularização fundiária, superlotação e o direito à moradia adequada para os povos indígenas em contexto urbano.
Hoje, a Aldeia Marçal abriga cerca de 500 pessoas distribuídas em pouco mais de 365 residências. O cenário é de insegurança jurídica e social: grande parte das casas possui matrícula individual, mas a regularização fundiária nunca foi concluída, o que impede a negociação legal dos imóveis e compromete a estabilidade das famílias.
A audiência foi aberta por Lísio Lili, presidente do Conselho dos Direitos e Defesa dos Povos Indígenas, que defendeu a escuta ativa das comunidades indígenas. Ele destacou que a imposição de modelos alheios à realidade indígena compromete a saúde e a cultura: “O modo de vida indígena é único, desde a alimentação até a forma de viver em família. Precisamos ser ouvidos.”
A vice-cacique Maildes Souza reforçou esse ponto ao denunciar a superlotação e a falta de espaço para as famílias que crescem em um ambiente urbano marcado por pressões imobiliárias. “Vivemos com famílias extensas em casas pequenas. Precisamos de respeito e de políticas que compreendam nosso jeito de viver.”
Os relatos emocionaram o público presente. Dona Ilda da Silva, moradora da Marçal, falou sobre o drama das famílias indígenas do Jardim Inápolis, que há mais de uma década lutam pela regularização e seguem sem acesso à moradia. “Vivemos três famílias em uma casa só. As crianças não têm espaço para brincar. Queremos que o projeto de moradia seja resolvido com urgência.”
A cacique Loureiro, da Comunidade Vivenda do Parque, formada por 32 famílias sem território definido, denunciou a precariedade das ocupações improvisadas e pediu o reconhecimento oficial da comunidade. Ela reforçou que as regras internas não permitem venda ou aluguel de casas e pediu respeito ao modo coletivo de organização.
O poder público também foi cobrado. Arceniel, representante da prefeitura no setor de moradia indígena, admitiu que o tema está estagnado há mais de uma década. Ele relembrou sua própria trajetória: “Vim da roça, trabalhei na cana, ajudei a fundar uma comunidade que hoje abriga quase 80 famílias. A luta é antiga e precisa sair do papel.”
A vereadora Luiza Ribeiro lembrou que há mecanismos possíveis, como linhas de crédito específicas e a inclusão dos indígenas urbanos no programa Minha Casa, Minha Vida, que atualmente contempla apenas o meio rural. “O Estado precisa enxergar que há populações indígenas nas cidades. E elas também têm direito à moradia digna, com respeito ao seu modo de vida.”
O jovem Valderson Pedro fez um apelo por políticas que garantam o direito à educação. Ele sugeriu a criação de uma república estudantil indígena, apontando que muitos universitários abandonam os estudos por não terem onde morar.
Nivaldo, liderança local, fez questão de usar sua língua nativa ao iniciar sua fala. Pediu que o direito de se expressar na língua ancestral fosse respeitado nas audiências. “O que meu avô deixou foi minha língua. É isso que somos. Isso é nossa identidade.”
Outras lideranças, como Alcides de Souza e Suzy Guarani, relataram as dificuldades com documentação e a perda de benefícios como isenção de água e luz, que anteriormente eram garantidos por projetos voltados ao bem viver das comunidades indígenas urbanas.
Ao final da audiência, a vereadora Luiza Ribeiro destacou que o momento foi de escuta, mas também de construção coletiva. “Queremos garantir voz às comunidades e construir caminhos reais para uma política habitacional justa, que respeite o jeito indígena de morar, viver e se organizar. Campo Grande tem responsabilidade com esse território e com sua história.”
A audiência reforçou a urgência de políticas públicas específicas para indígenas em contexto urbano — um grupo que, apesar de estar geograficamente inserido nas cidades, segue invisível nas políticas de habitação, infraestrutura e assistência.