O Estado de S. Paulo/E+ | 17 de novembro de 2025 - 09h25

Documentário revisita caso Eloá e expõe impacto do crime e da cobertura midiática

Obra traz depoimentos inéditos e revisita falhas da polícia e da imprensa no sequestro que mobilizou o país em 2008

ENTRETENIMENTO
A jovem Eloá Cristina Pimentel foi mantida por cerca de cem horas em cativeiro pelo ex-namorado, Lindemberg Alves, em Santo André - Foto: Netflix/Divulgação

Quase duas décadas depois, o sequestro de Eloá Cristina Pimentel — episódio que mobilizou o país por mais de cem horas — volta ao debate público. A Netflix estreou o documentário Caso Eloá: Refém ao Vivo, que revisita o crime ocorrido em outubro de 2008 em Santo André (SP), quando a adolescente de 15 anos foi mantida em cárcere pelo ex-namorado, Lindemberg Fernandes Alves, então com 22. O desfecho foi trágico: Eloá morreu após ser baleada na cabeça, e a amiga Nayara Rodrigues foi atingida no rosto.

Dirigido por Cris Ghattas e produzido por Veronica Stumpf, o filme resgata a cronologia do caso e evidencia pontos que seguem sensíveis — da cobertura midiática considerada invasiva aos erros operacionais da polícia. A produção nasceu de uma ideia do roteirista Ricky Hiraoka e levou dois anos para ser desenvolvida. Em 1h25, reúne familiares, profissionais de imprensa que acompanharam o sequestro e policiais envolvidos nas negociações.

Para Stumpf, revisitar a história também significa reconhecer que Eloá não teve sua condição de vítima plenamente compreendida na época. “Ela foi assassinada quando o Brasil ainda não reconhecia o feminicídio. Lindemberg não foi julgado como feminicida. Eloá foi negligenciada pela polícia, pela imprensa e pela sociedade, que tratou tudo como um grande reality show”, afirma.

O tema permanece atual. Ghattas lembra que, em 2023, o país registrava recorde de feminicídios — e os números continuam altos. O Mapa da Segurança Pública de 2025 aponta que quatro mulheres são mortas por dia no Brasil.
“É pela emoção e pelo impacto que conseguimos nos rever como sociedade”, diz a diretora. “A história de Eloá traz camadas: a violência de gênero, a atuação do Estado, o papel da mídia. É uma oportunidade de olhar para os limites que ainda precisamos estabelecer.”

Retrato da adolescente e reconstrução do caso

Além de recuperar os principais momentos do sequestro — inclusive a controversa decisão de permitir o retorno de Nayara ao cativeiro —, o documentário apresenta trechos inéditos do diário de Eloá. Os escritos mostram uma jovem que temia pela própria segurança, buscava apoio em Deus e ainda fazia planos de futuro, entre eles o desejo de se casar com Lindemberg.

A diretora explica que houve um esforço para evitar a superexposição do agressor. “Não queríamos transformar o assassino no centro da narrativa. Buscamos amplitude de visões para tratar o crime de forma humana, sem recorrer ao sensacionalismo”, afirma.

Stumpf, responsável pelo contato com a família, reforça que a dor dos parentes raramente foi tratada com sensibilidade durante o caso. “Essa menina praticamente foi culpada pela própria morte. Meu compromisso sempre foi dar voz à Eloá”, diz.

Influência da imprensa 

Um dos episódios mais emblemáticos relembrados pelo filme é a entrevista concedida por Lindemberg ao vivo a Sonia Abrão no programa A Tarde É Sua, da RedeTV!. O contato direto com a mídia interferiu nas negociações e, segundo especialistas entrevistados, contribuiu para que o sequestrador se sentisse “a estrela” do momento.

Depois da exposição, ele passou a ignorar chamadas da polícia e a se comunicar somente por meio de programas de TV, o que dificultou ainda mais o avanço das negociações.

Ghattas e Stumpf defendem que o caso provocou uma mudança profunda na forma como a imprensa atua em situações de sequestro. Hoje, a exibição de informações em tempo real é restrita para não colocar vítimas em risco.

“Não adianta apontar apenas para um lado. Todos aprendemos. Houve autocrítica e relatos duros durante as entrevistas”, diz Ghattas. “As pessoas têm direito à informação, mas qual é o limite disso?”

Apesar dos avanços, Stumpf ressalta que a sociedade ainda reproduz discursos que culpabilizam mulheres pela violência sofrida.
“É triste ver que, tantos anos depois, ainda escutamos comentários sobre o fato de Eloá namorar tão jovem, como se isso justificasse algo”, afirma. “Seguimos responsabilizando as vítimas.”

O documentário, segundo suas criadoras, busca justamente estimular essa reflexão coletiva sobre violência de gênero, responsabilidade midiática e o que mudou desde 2008, mas também sobre o que ainda não mudou.