Luiz Guilherme Gerbelli | 10 de novembro de 2025 - 09h55

"Não existe bala de prata ou reforma única que vai resolver a situação fiscal"

A economista-chefe para América Latina do BNP Paribas, avalia que o próximo governo terá de tomar medidas impopulares se quiser encaminhar uma solução para as contas públicas

FERNANDA GUARDADO
A economista-chefe para América Latina do BNP Paribas, Fernanda Guardado - (Foto: Reprodução)

A economista-chefe para América Latina do BNP Paribas, Fernanda Guardado, avalia que o próximo governo vai ter de promover um duro ajuste das contas públicas se quiser estancar o endividamento brasileiro. “Estamos falando de corte de gastos e aumento de impostos da ordem de R$ 350 bilhões, R$ 370 bilhões”, afirma.

Ex-diretora do Banco Central, Fernanda diz que o cardápio de medidas que o País terá de adotar será amplo. Envolve, por exemplo, mudanças na Previdência, alterações na regra do salário mínimo, desindexação do gasto com saúde e educação e avanços na reforma administrativa.

Quais os principais desafios do próximo governo na área fiscal, seja qual for o resultado da eleição do ano que vem?

De fato, 2027 vai ser um ano com ainda mais desafios do que 2026. Com o Orçamento que temos, já há bastante incredulidade no atingimento da meta fiscal do ano que vem, que é de um superávit de 0,25% do PIB. Nós vemos até como extremamente difícil atingir o limite inferior dessa meta. E o que importa para a dinâmica da dívida pública não é a meta com seus abatimentos. É a meta de verdade. Vai ser um ano complicado. A partir de 2027, nós começamos a ter o retorno dos precatórios para dentro do Orçamento, algumas medidas de arrecadação que são consideradas one-off (temporárias), que passam a valer a partir do ano que vem, mas não necessariamente vão estar lá a partir de 2027, como, por exemplo, os leilões de petróleo. E algumas medidas que, de uma certa forma, calcificam um crescimento mais forte dos gastos, que estarão lá.

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Quais seriam essas medidas de gastos, por exemplo?

Como o reajuste ao salário mínimo, ligado ao crescimento do PIB, e o próprio crescimento do BPC (Benefício de Prestação Continuada), que o governo tem tido uma dificuldade muito grande de controlar. De fato, 2027 vai exigir algum tipo de medida ou discussão mais estrutural, que junte não só o Executivo, mas também o Legislativo, junto da sociedade. Tem de ser um projeto de País para endereçar esse tema. Apenas o salário mínimo, nós já sabemos, que está contratado, como a regra atual, um avanço de 2%. Nós prevemos um aumento do PIB de 2,2% para 2025. Esses 2,2% vão estar refletidos no salário mínimo em 2027. Isso tem um impacto relevante nas contas públicas. O que esse próximo governo que vai ser eleito em 2026 — seja a continuidade do atual ou um novo — vai precisar endereçar? Infelizmente, não existe uma bala de prata, uma única reforma que vá resolver a situação. É uma série de reformas, e muitas delas são impopulares. É por isso que é necessária uma concertação e um convencimento da sociedade de que é preciso fazer alguma coisa a respeito das contas públicas.

E quais medidas de ajustes seriam necessárias logo no início do novo governo?

O atrelamento do salário mínimo ao crescimento real do PIB, que já teve de ser limitado pelo ministro Haddad no ano passado em 2,5%. Vamos supor que o crescimento potencial do Brasil seja próximo de 2%. Você vai perenizar um crescimento real do salário mínimo acima do aumento da produtividade do trabalho. A produtividade do trabalho no Brasil tem mantido um crescimento pífio, mas o crescimento do salário mínimo, em termos reais, é constante. Isso leva a um aumento dos custos do trabalho, além do impacto que tem sobre as contas públicas. Eu acho que essa seria uma primeira medida a se tomar, uma medida relativamente rápida.

Quais outras medidas a sra. enxerga como necessárias?

A revisão de subsídios e subvenções econômicas é algo urgente. Inclusive, de forma meritória, é uma discussão que o ministro Haddad tem colocado, mas que não tem sido muito empurrada pelo Executivo, de uma forma geral, porque está lidando com diversos lobbies diferentes que são beneficiados. Uma conta do Ministério do Planejamento, feita em relação a 2024, apontou que a conta de subsídios e subvenções econômicas no Brasil é da ordem de R$ 650 bilhões. Isso é mais de 5% do PIB. Não é um dinheiro de que o Brasil pode abrir mão nesse momento. São diversas áreas para serem atacadas.

O Brasil está maduro para encarar um debate que envolva uma agenda impopular?

Se o Brasil não encarar esse debate, nós vamos chegar a um cenário tão grave que a discussão vai ocorrer com muito mais custo e muito mais dor do que se ela for feita de uma forma controlada e coordenada. Nós já vimos o Brasil passar por crises ligadas à questão fiscal no passado. Nós também já vimos o Brasil ter esse tipo de conversa, de discussão de reformas impopulares, mas que andam também. Vou dar um exemplo: em 2016, tivemos a aprovação de um teto de gastos, o início da discussão de uma reforma da Previdência e de uma reforma tributária. E, depois, houve o avanço da reforma trabalhista. São coisas que vieram sendo amadurecidas no tempo e acontecendo. A reforma tributária só foi aprovada neste governo. Eu acho que é importante haver discussão para o amadurecimento.

O que é difícil acontecer é ter uma falta de coordenação entre os entes. É muito importante que esse tipo de reforma e medidas que estão sendo discutidas tenham a simpatia tanto do Executivo quanto do Legislativo, para que haja a percepção de que há uma divisão no custo político da medida. A minha percepção, ouvindo os políticos, é que eles entendem que há esse desafio, que a coisa precisa ser endereçada. Mas um lado não vai endereçar se o outro não estiver junto. Um (lado) não vai querer carregar o fardo político sozinho. É importante que o governo que estiver em 2027 tenha essa ambição de lidar com a situação juntamente com o Legislativo, porque um não vai fazer isso sem o outro. É preciso que tanto o Executivo como o Legislativo estejam alinhados nessa discussão e tentando tocar algumas dessas discussões. Eu acho que algumas discussões estão mais maduras do que outras, mas é necessário ter essa concertação de poderes para poder avançar.

Sabemos que o governo tem de endereçar, em algum momento, a indexação de alguns gastos, particularmente saúde e educação, com a receita. É o tipo de medida que foi tomada lá atrás — eu acho que até com uma boa intenção do legislador, de garantir que saúde e educação fiquem preservados —, mas ela limita a flexibilidade do gestor do Orçamento. Você direciona, às vezes, dinheiro para setores que não precisam. Já há um crescimento do Fundeb contratado dentro do Orçamento. E a sociedade precisa entender que a nossa estrutura demográfica está mudando também. Vamos precisar de cada vez mais saúde e, na educação, o crescimento de crianças vai desacelerar bastante nos próximos anos.

As medidas têm de ser anunciadas logo de cara ou é possível implementá-las por fases?

Quanto antes as medidas são anunciadas, melhor, mais tempo você tem. Qual é o grande problema do Brasil hoje? Vamos considerar que o País é uma empresa. O Brasil é uma empresa muito alavancada, que tem 80% do seu PIB em forma de dívida. E, só para contextualizar: são 20 pontos porcentuais (de dívida) acima da média dos países emergentes. Essa empresa está se deparando com um custo de dívida cada vez mais alto, porque o risco dela está crescendo. O serviço da dívida está ficando cada vez mais caro. E, além disso, é uma empresa que dá prejuízo consistentemente, que são os déficits primários. Com prejuízo, o crescimento do serviço da dívida e a alavancagem muito alta, cresce o risco de essa empresa ter uma recuperação judicial ou uma crise. Essa é a grande fraqueza e a preocupação que fica aparente nas discussões do mercado em relação à política fiscal do Brasil. Tem de endereçar, principalmente, o fato de que essa empresa está dando prejuízo, porque, senão, ela não vai conseguir pagar esse serviço da dívida, que é crescente no tempo.

Os credores dessa dívida podem ter uma percepção de maior ou menor risco dessa empresa. Se essa empresa — barra Estado — não está tomando nenhuma atitude para endereçar o seu prejuízo, é um tipo de risco. Se essa empresa anuncia um plano de reestruturação ou fala que vai tentar diminuir os seus custos, isso compra mais tempo para fazer o ajuste de uma forma mais suave. É um cenário que também remete a 2016. Quando chega um governo com um projeto, as coisas não passaram todas de uma vez só. Foram passadas no tempo, mas você vê um ajuste no câmbio, nas inflações implícitas, na taxa de juros longa do mercado, que acabam tendo um impacto em diminuir o serviço da dívida e aumentar o crescimento. É um círculo virtuoso que pode ser iniciado a partir do momento em que o governo apresenta um plano crível e o comprometimento em endereçar essas medidas que todo mundo sabe quais são.

O cardápio está aí...

O cardápio está dado. Mas quanto antes você anuncia, maior é o seu compromisso, comprometimento e credibilidade com essa agenda. Mais rápido você consegue se beneficiar dessa melhora de expectativas que pode acontecer.

A sra. citou o teto. O arcabouço tem de ser substituído?

Na minha cabeça, é muito mais importante discutir as reformas. Em seguida, a gente discute qual é o arcabouço fiscal, depois que você tiver arrumado um pouco mais a casa, tiver diminuído os crescimentos reais de gastos.

E a questão da Previdência?

A gente precisa rediscutir uma reforma da Previdência, com mais um ligeiro aumento na idade de aposentadoria e alguns regimes especiais que persistem.

É muita força política que o próximo presidente vai precisar, não? Dá para fazer isso no Brasil?

Dá. O que a gente já viu no passado é que não dá para necessariamente fazer tudo de uma vez ou nos primeiros meses. Você escolhe, vai comprando uma briga de cada vez e vai seguindo. Isso a gente observa não só nos ciclos políticos do Brasil, mas em outros países também, como, por exemplo, na Argentina. No caso do governo Milei, era um governo que não tinha maioria no Congresso. Na verdade, era um bloco bem de minoria, mas, por força do apoio popular, a agenda do presidente conseguiu avançar no congresso com medidas muito relevantes e estruturais para a Argentina. E essa é uma tendência que foi reforçada com essa eleição, com esse apoio popular a uma agenda reformista. Nós já vimos isso também acontecer no passado no Brasil, mas o meu ponto é que ela é uma agenda que, exatamente por exigir esse tipo de coordenação e força política, precisa acontecer no primeiro ano de mandato. O primeiro ano de mandato é um momento em que os agentes vão estar olhando, e esse governante, munido da aprovação das urnas, tem de aproveitar para botar a sua força atrás das principais medidas que ele considera que são viáveis de serem aprovadas no Congresso.

Qual o tamanho do ajuste que o Brasil precisa? É maior do que o vimos na passagem do primeiro para o segundo governo Dilma?

O nível de dívida/PIB do Brasil é bem mais alto do que na época do início do segundo governo. Nós estamos partindo de um nível de dívida bem mais alto, de um serviço da dívida bem mais alto e de um déficit. O que seria necessário observar em termos de resultado primário para entrar numa trajetória de sustentabilidade da dívida pública? Entre 2,5% do PIB e 3% do PIB de superávit. É um ajuste muito relevante. Muito relevante. Estamos falando de corte de gastos e aumento de impostos da ordem de R$ 350 bilhões, R$ 370 bilhões.

E se essa discussão não avança?

Se nada disso acontece, se essa discussão não acontece, você pode ter uma espiral de desconfiança e incerteza, que piora muito a situação e te leva para uma crise em que a discussão acontece do mesmo jeito, só que de uma forma muito mais dolorosa.

Mais inflação, por exemplo?

É possível. É uma das maneiras de se diminuir o custo da dívida em relação ao PIB. Agora, não parece ser uma solução popular. A população brasileira é muito avessa a acelerações de inflação e percebe isso rápido

Temos vistos vários países enfrentando problemas fiscais. Isso pode dar tempo para o Brasil?

De fato, o mundo pós-covid é muito mais endividado. Quando eu tenho essa discussão com investidores estrangeiros sobre o endividamento alto do Brasil e eu falo que é de 80% (do PIB), eles dizem: “Mas, olha os Estados Unidos, olha a França, olha o Reino Unido”. A diferença é que eles emitem euros, emitem dólares, têm grau de investimento. Por isso, eu gosto de comparar o Brasil com os outros emergentes, comparar o mesmo tipo de demanda por dívida soberana. O fato de o mundo todo estar um pouco pior ou um pouco mais endividado, talvez, tenha comprado até agora um pouco de boa vontade com o Brasil. Mas eu acho que isso tem limite. O que aconteceu em dezembro, com toda aquela confusão, não foi só por conta do pós-eleição do Trump, porque a gente não viu o mesmo em todos os países emergentes. Houve uma coisa que foi muito forte aqui no Brasil e teve a ver com decisões de caráter fiscal que tinham sido tomadas recentemente.

Na época o governo falou de um exagero. Não houve exagero, então?

No final das contas, não é que nós voltamos hoje para um cenário totalmente igual ao que estava prevalecendo, por exemplo, em setembro ou outubro. As taxas são muito mais altas. A taxa de juros está em outro patamar, a curva de juros de mercado mostra juros reais da ordem de 7,5% daqui a cinco, dez anos. Isso não é um cenário que demonstra uma tranquilidade em relação à dívida pública. O real se apreciou bastante. É um indicador que, de fato, melhorou bastante, mas não foi uma coisa particular só do Brasil. Na verdade, essa tendência refletiu muito mais o enfraquecimento global do dólar do que uma melhora na perspectiva do Brasil ou de sua política fiscal. Se a gente comparar, por exemplo, o real com o euro, os dois avançaram muito fortemente. Outras moedas também, apesar de não terem tido um comportamento tão positivo quanto a do Brasil. Mas eu acho que tem muito mais a ver com a depreciação do dólar do que com a reversão de um exagero no Brasil.

A sra. falou num superávit de 2,5% do PIB ou 3% do PIB. Ele tem de ser alcançado logo no início do governo ou pode ser alcançado até 2030, por exemplo?

Para chegar nesse nível de superávit antes de 2030, vai exigir, de fato, uma reversão rápida e reformas sendo passadas no primeiro semestre, o que não é impossível. E, obviamente, anunciando o projeto e contando com o tempo, a reversão das expectativas torna mais provável acontecer isso. Agora, note que são medidas que não vão impactar 2027 muito provavelmente. São medidas tomadas em 2027 para valerem a partir de 2028, e a reforma administrativa mais longe ainda. A reforma da Previdência também é para garantir que o futuro não seja explosivo. Mas algumas medidas podem valer, como desindexar o salário mínimo do PIB, fazer algum tipo de restrição mais forte de subsídio e subvenções econômicas a partir de 2028. A meu ver, o mais provável é que se tenha uma trajetória de melhora que seja suave. Uma trajetória como a da Argentina, em que houve virada de cinco pontos porcentuais do resultado do governo em um ano, é mais difícil de acontecer no Brasil. Eles estavam numa crise, e foi mais fácil fazer isso. No Brasil, principalmente, se houver um pouco de boa vontade e reversão de expectativas, é possível fazer esse ajuste no tempo.