Redação O Estado de S. Paulo | 06 de novembro de 2025 - 20h00

Entidades e artistas reagem a projeto que ameaça aborto legal infantil

PDL aprovado na Câmara anula resolução que orienta proteção a meninas vítimas de violência sexual e levanta alerta entre especialistas e sociedade civil

DIREITOS DAS CRIANÇAS
PDL suspende resolução que trata do atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual - (Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados)

Organizações da sociedade civil, artistas e o próprio Ministério das Mulheres reagiram com veemência à aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 4/2024, que pode dificultar o acesso ao aborto legal por meninas vítimas de estupro. O texto, votado na noite de quarta-feira (5), anula uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e agora segue para análise do Senado Federal.

A resolução suspensa estabelecia orientações para o atendimento humanizado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, detalhando diretrizes já previstas na legislação brasileira. O texto garantia, por exemplo, o direito à informação sobre a possibilidade de aborto legal em casos de estupro, sem a exigência de boletim de ocorrência ou autorização judicial.

Para as organizações Anis - Instituto de Bioética, Plan International Brasil e Católicas pelo Direito de Decidir, a decisão da Câmara representa um grave retrocesso. “A Câmara dos Deputados sacrificou a infância de meninas estupradas”, afirmaram as entidades em nota conjunta. Segundo dados divulgados pela ONG Anis, cerca de 20 mil meninas dão à luz anualmente no Brasil, enquanto apenas 200 conseguem acessar o aborto legal.

A resolução do Conanda tratava especificamente da escuta e atendimento a vítimas de violência sexual, reforçando a autonomia das meninas e a obrigação dos serviços de saúde de respeitarem seus direitos. Um dos trechos anulados previa que profissionais da saúde não poderiam se recusar a realizar o procedimento com base apenas na descrença sobre o relato da vítima — o que, segundo especialistas, é comum e agrava a violência institucional.

“Esse direito já existe há mais de 80 anos, mas são tantas barreiras que a realidade é trágica”, destacou a Anis. A ONG também lembrou que meninas grávidas com menos de 14 anos correm cinco vezes mais risco de morte durante a gestação, parto ou puerpério. “Forçar uma criança ou adolescente estuprada a seguir grávida e parir não só é tortura como coloca a vida delas em risco”, reforçou a entidade.

Em nota oficial, o Ministério das Mulheres também manifestou preocupação com o avanço do PDL, argumentando que o projeto “cria um vácuo que dificulta o acesso das vítimas ao atendimento e representa um retrocesso em sua proteção”. Segundo a pasta, a resolução do Conanda apenas detalha como aplicar a lei e garantir a sobrevivência das meninas.

“Suspender esta medida é fechar os olhos para a violência e falhar com as meninas brasileiras”, concluiu o ministério.

A reação ao PDL também ecoou entre figuras públicas. A atriz Camila Pitanga e a cantora Anitta se posicionaram contra a proposta em suas redes sociais. Anitta compartilhou uma fala da jornalista Adriana Araújo criticando o projeto. Já Camila repostou uma imagem que viralizou com os dizeres: “Criança não é mãe. Estuprador não é pai”.

A atriz Luana Piovani, por sua vez, publicou um vídeo classificando a aprovação como “um absurdo”. “Precisamos fazer entender que criança não é mãe, criança não é esposa e não é mulher. A gente precisa criar essa conscientização”, disse.

Agora, caberá ao Senado decidir se o PDL será confirmado ou arquivado. Organizações sociais e ativistas pressionam parlamentares para que a medida não avance. Caso o decreto seja mantido, especialistas temem que os já escassos casos de aborto legal em meninas vítimas de violência sexual se tornem ainda mais raros.

A legislação brasileira permite o aborto em três situações: risco de vida à gestante, anencefalia fetal e gravidez resultante de estupro. No caso de meninas com menos de 14 anos, toda gestação é legalmente considerada fruto de violência sexual, dada a idade mínima de consentimento.