Brasil é julgado por mortes de 96 bebês em clínica neonatal no Rio nos anos 1990
Corte Interamericana analisa denúncia de negligência e falta de fiscalização estatal após série de óbitos em unidade conveniada ao SUS em Cabo Frio
NACIONALA Corte Interamericana de Direitos Humanos iniciou nesta sexta-feira (26) o julgamento do Estado brasileiro pelas mortes de 96 bebês ocorridas entre 1996 e 1997 na Clínica Pediátrica da Região dos Lagos (Clipel), localizada no município de Cabo Frio, no Rio de Janeiro. As famílias acusam negligência médica e falhas graves na fiscalização sanitária da unidade, que operava com recursos do Sistema Único de Saúde (SUS).
O caso, que se arrasta há quase três décadas sem respostas definitivas, chegou à Corte após esgotados os recursos judiciais e administrativos no Brasil. A principal acusação é de que o Estado falhou em proteger o direito à vida e à saúde dos recém-nascidos e, posteriormente, negligenciou o direito das famílias à verdade, à justiça e à reparação.
Unidade conveniada ao SUS acumulava denúncias
A Clipel funcionava dentro do Hospital Santa Izabel, como uma unidade de terapia intensiva neonatal. Fundada em 1995 como uma entidade privada sem fins lucrativos, recebia pacientes do SUS encaminhados por hospitais públicos da região.
Conforme os documentos apresentados à Corte, os bebês internados chegaram à unidade com quadros de saúde estáveis ou moderados. Muitos apresentavam problemas comuns como prematuridade ou dificuldade respiratória, mas não estavam em situação crítica à chegada.
Mesmo diante de uma infecção hospitalar já identificada na Clipel, os recém-nascidos foram internados na unidade, onde posteriormente faleceram. Laudo elaborado pelo Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), vinculado ao Ministério da Saúde, concluiu que a taxa de mortalidade da clínica era "anormal" e não podia ser explicada por fatores clínicos previsíveis, mas sim por contaminação ambiental e falhas sanitárias.
A comissão que levou o caso à Corte IDH afirma que houve uma "cadeia de omissões" por parte do Estado brasileiro, tanto na fiscalização da clínica quanto na condução das investigações e punições posteriores. Entre 1997 e 2007, ao menos cinco processos administrativos e judiciais foram abertos, mas todos terminaram sem responsabilizações efetivas.
No Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), o então diretor da Clipel foi absolvido. O Ministério Público acusou alguns médicos por homicídio culposo, mas os profissionais foram inocentados após quase uma década de processo, por falta de individualização das condutas.
As famílias também acionaram a Justiça em ações cíveis de reparação, mas todos os pedidos foram negados. Até hoje, nenhum agente público ou profissional de saúde foi punido.
Negligência, racismo e sofrimento ignorado
Para a comissão que apresenta a denúncia na Corte, o Estado violou uma série de princípios estabelecidos na Convenção Americana de Direitos Humanos, incluindo o direito à vida, à integridade psíquica, à igualdade e à proteção da infância.
Segundo o parecer, o processo ignorou fatores relevantes como a condição de vulnerabilidade das mães no pós-parto e o recorte racial das famílias atingidas, em sua maioria negras e pobres. "A dor de não saber a verdade e a impunidade causam sofrimento contínuo e agravam a violação aos direitos humanos", afirma a comissão.
Outro ponto destacado foi a omissão do Estado em exercer o dever de fiscalização de clínicas conveniadas ao SUS. "Havia risco iminente aos direitos das crianças, e o Brasil deveria ter agido para preveni-los", apontam os representantes do caso.
O julgamento ainda está em fase inicial e pode se estender por semanas. Caso condene o Brasil, a Corte poderá determinar medidas de reparação às famílias, além de recomendações para aprimorar a fiscalização de serviços de saúde conveniados ao sistema público.