Felipe Frazão | 17 de setembro de 2025 - 14h45

Governo Trump atrasa vistos e dá ao Brasil tratamento similar ao de regimes autocráticos

Delegação brasileira enfrenta incertezas para Assembleia da ONU; Itamaraty pressiona nos bastidores e estuda reação diplomática

DIPLOMACIA
Delegação brasileira enfrenta atraso na emissão de vistos diplomáticos e pode pressionar a ONU por arbitragem contra os EUA. - Sergi Reboredo / VWPics via AP Images

O governo dos Estados Unidos, sob comando de Donald Trump, tem retardado a emissão de vistos diplomáticos para ministros brasileiros, o que provocou desconforto no Palácio do Planalto e comparações com o tratamento dado a representantes de regimes como China, Irã, Cuba, Rússia, Síria e Venezuela. A prática, considerada por diplomatas como uma forma velada de retaliação, foi denunciada ao comitê da Organização das Nações Unidas (ONU) responsável pelas relações com o país anfitrião.

A indefinição sobre os vistos preocupa a equipe do secretário-geral da ONU, António Guterres, que acompanha o caso com atenção. O Itamaraty ainda não recebeu negativas formais, mas classifica os atrasos como um gesto político que dificulta a organização da comitiva brasileira para a Assembleia Geral da ONU, marcada para os próximos dias.

Prática já foi adotada contra regimes adversários

O Relatório de 2024 do Comitê de Relações com o País Anfitrião, publicado sob o governo Joe Biden, documenta que regimes como o da Síria, Rússia e Venezuela enfrentaram atrasos de meses para a emissão de vistos, restrições severas de circulação e imposição de entrada e saída por aeroportos específicos. Essas medidas foram justificadas pelos EUA sob o argumento de segurança nacional.

Agora, o Brasil enfrenta atrasos semelhantes. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, aguarda há quase um mês a emissão de seu visto, solicitado em 19 de agosto. Até esta quarta-feira (17), não havia resposta positiva nem negativa. Padilha já teve sua família punida com o cancelamento de vistos durante o programa Mais Médicos.

Nesta terça-feira (16), os EUA liberaram o visto para o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, mas apenas após revogar seu visto de turismo. Segundo integrantes do governo, há um indicativo de que os vistos serão emitidos, mas “em cima da hora”, o que tumultua a organização da delegação.

Brasil cogitou pressionar ONU e até mudar sede do debate

O clima de tensão levou o Itamaraty a cogitar medidas inéditas. Segundo fontes do governo, chegou-se a discutir internamente a transferência temporária da sede do Debate Geral da ONU para Genebra, como ocorreu em 1988, quando os EUA negaram visto ao líder palestino Yasser Arafat.

Outra possibilidade considerada é pressionar a ONU para abrir um processo de arbitragem contra os EUA por violação do Acordo de Sede, que garante a entrada de representantes dos países-membros. A abertura do processo depende de iniciativa formal do secretário-geral da ONU.

Caso nenhuma solução seja encontrada, o Brasil poderá insistir na arbitragem. Um eventual tribunal seria formado por três árbitros — um indicado pela ONU, um pelo governo americano e um terceiro acordado entre ambos ou indicado pelo presidente da Corte Internacional de Justiça.

Crise política e ideologia no centro do impasse

No Planalto, a leitura é de que a atitude dos EUA tem motivação ideológica. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva avalia mencionar a situação dos vistos e o impedimento de entrada da delegação palestina em seu discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, como forma de denunciar a crise do multilateralismo.

A delegação brasileira deve contar com ministros de alto escalão, como Fernando Haddad (Fazenda), Marina Silva (Meio Ambiente), Alexandre Padilha (Saúde), Mauro Vieira (Relações Exteriores), Ricardo Lewandowski (Justiça), Camilo Santana (Educação) e Esther Dweck (Gestão e Inovação). A comitiva ainda não foi oficializada, mas há expectativa de que Lula decole no sábado (20) ou domingo (21).

Diplomatas brasileiros evitam falar em boicote, mas classificam o tratamento como "constrangedor", comparando com situações já vividas por países considerados hostis pelos EUA.

Ao retardar a concessão de vistos diplomáticos a ministros do Brasil, o governo Donald Trump deu ao País um tratamento similar ao enfrentado nos Estados Unidos por representantes de regimes autocráticos como China, Cuba, Irã, Rússia, Síria e Venezuela, que, nos últimos anos, registraram reclamações semelhantes perante a ONU.

A indefinição sobre os vistos da delegação brasileira motivou preocupação no gabinete do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. O Itamaraty fez gestões de bastidores junto aos diplomatas americanos e ouviu que os vistos estão ainda em processamento, portanto não havia uma negativa ou banimento, ainda que parcial, até agora.

O Relatório do Comitê de Relações com o País Anfitrião, referente a 2024 (governo Joe Biden) traz um relato amplo da situação. Segundo o documento, Síria, Rússia e Venezuela defenderam que o secretário-geral convocasse um processo de arbitragem em virtude da questão dos vistos. Esses países apontam casos concretos de demora de meses na emissão de visto, restrição de circulação para fora da Ilha de Manhattan ou limitadas a raio de 40 quilômetros, até para filhos e familiares dos diplomatas.

A Síria apontava discriminação de Washington e enfrentou restrições por mais de 10 anos. No entanto, com a queda do regime Bashar Assad, o governo Trump quer estreitar laços e concedeu isenção dessas limitações para que o presidente sírio, Ahmed al-Shara, viaje à ONU.

A Rússia reclamou de recusa de visto a altos representantes enviados a conferências nos EUA e de demora média de cinco meses e até dois anos para concessão, no caso da equipe destacada para a missão permanente na ONU. Para Moscou, a "inação" do secretário-geral permite que o governo americano manobre com vistos e "determine" a composição das delegações russas.

Havana acrescentou que os EUA impõem obrigação de entrada e saída por meio do aeroporto internacional JFK, o que aumenta custos de viagem. Pequim afirmou ver razão política para a restrição de deslocamento de seus diplomatas nos EUA e relatou casos fora de NY, como a 10ª Conferência contra Corrupção em Atlanta.

Caracas também citou como razão de fundo as divergências políticas e disse que ocorrem atrasos sistemáticos e que vistos solicitados com meses de antecedência são emitidos apenas 48-72 horas antes dos eventos. Já Teerã afirmou que há discriminação em relação a outros países e que vistos de entrada única demoram meses e inviabilizam participação de delegados em conferências e reuniões, além das restrições de movimento e inspeções/revista pessoal secundária nos aeroportos americanos, o que considerou "humilhante".

Os EUA negaram situações vexatórias ou discriminação e disseram que os diplomatas não estão isentos de verificações adicionais de segurança. Também argumentam que a demora em vistos se deve a pedidos tardios. A diplomacia americana afirmou que está comprometida com as obrigações do acordo de sede e citou que 99% dos vistos solicitados para a Semana de Alto Nível da 78ª Assembleia Geral foram concedidos.

Sobre a recusa de vistos, alegaram que agem para proteção da segurança nacional dos EUA e da integridade das instalações da ONU, obrigação registrada no acordo de sede, em alguns casos sensíveis. Mas os obstáculos são crescentes. Neste ano, os EUA prometem banir neste ano delegação palestina. Nos últimos anos, Washington também retardou a liberação de visto e criaram limitações à circulação de representantes de países hostis, sob o argumento da segurança nacional.

Incômodo no governo

O presidente Lula considera citar a recusa de credenciamento da comitiva da Palestina, liderada por Mahmoud Abbas, em seu discurso inaugural. Seria uma menção no contexto da crise do multilateralismo e do descrédito da ONU.

Também como parte do descontentamento com a questão dos vistos, o Itamaraty chegou a cogitar de apoiar uma iniciativa de transferência temporária da sede do Debate Geral para outra cidade, como Genebra, na Suíça, segundo uma fonte do governo, mas desistiu, diante da falta de tempo hábil.

Há precedente. Em 1988, parte do Debate Geral da Assembleia Geral ocorreu em Genebra, como uma forma de driblar a recusa de visto do governo Ronald Reagan ao então líder da Organização para Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat.

Outra possível ação será pressionar politicamente para que a ONU abra um procedimento arbitral por violação do acordo de sede por parte dos americanos. Apenas a ONU poderia fazê-lo, e não o Brasil diretamente, já que se trata de um acordo de sede entre duas partes: EUA e ONU.

Se nenhuma forma de acordo for alcançada, seria formado um tribunal arbitral com três indicados - um do secretário-geral da ONU, um do secretário de Estado americano e um terceiro acordado entre ambos ou sugerido pelo presidente da Corte Internacional de Justiça (CIJ). Os dois lados podem até solicitar que a Assembleia Geral encomende um parecer consultivo da CIJ, que deverá ser levado em consideração pelo tribunal de arbitragem ao tomar a decisão final.

O acionamento da arbitragem somente seria proposto pelo Brasil caso se concretize uma negativa, o que configura a violação ao acordo de sede. A expectativa do governo Lula é que, apesar do atraso, o governo Trump não deve chegar a tanto. O Itamaraty afirmou que não vê motivo para negativas, uma forma de pressionar em público, mas também ressalta que o visto é somente expectativa de entrada no EUA e que pode haver problemas na chegada a Nova York.

Vistos 'em cima da hora'

Nesta terça-feira, dia 16, os americanos deram um indicativo de quem os vistos devem sair, embora "em cima da hora", como esperam integrantes de ministérios e da Presidência da República. Entregaram o visto diplomático ao ministro Ricardo Lewandowski (Justiça), uma categoria específica para atividades governamentais. Antes, ele havia tido o visto comum de turismo cancelado.

O caso mais sensível é o da Saúde. O ministro Alexandre Padilha aguarda a concessão de seu visto diplomático há quase um mês para ir a reuniões oficiais em Nova York e Washington. Segundo o ministério, ele formalizou o pedido em 19 de agosto. Até agora, permanece sem resposta positiva ou negativa. O ministro já tinha sido punido por causa do Mais Médicos - sua família perdeu visto de turismo.

A demora em si já é uma prática que embaraça os preparativos da delegação brasileira. O presidente Lula avalia decolar no sábado, dia 20, ou no domingo, dia 21, e levar os ministros consigo. A comitiva, ainda não oficializada, deve ter ao menos os ministros Esther Dweck (Gestão), Alexandre Padilha (Saúde), Camilo Santana (Educação), Mauro Vieira (Relações Exteriores), Fernando Haddad (Fazenda), Marina Silva (Meio Ambiente) e Ricardo Lewandowski (Justiça).

Integrantes do Palácio do Planalto dizem que a prática de concessão de vistos tardios, às vezes horas antes da decolagem ou de reuniões, afeta montagem de comitivas e pode tumultuar de alguma forma a participação do País em reunião de alto nível. Eles veem razões "ideológicas" nas atitudes do governo Trump.

Diplomatas evitam dizer se a delegação brasileira será reduzida, mas afirmam que ela tem dimensões "modestas" para o peso do País na ONU e que há cuidados adicionais no caso do presidente, como deslocamento de médicos, segurança, assessores e equipamentos de comunicação própria.