Mulheres empreendem, planejam e comandam', diz Sandra Amarilha em defesa da inclusão
Campo Grande recebe pela primeira vez o encontro nacional 'Elas Governam' e vira palco de um debate raro: mulheres discutindo orçamento público
LIDERANÇA FEMININANa manhã desta quarta-feira (20), enquanto Campo Grande se prepara para completar seus 126 anos com solenidades e eventos populares, algo menos visível — mas de peso simbólico — acontece num auditório da cidade: mulheres sentaram-se para falar sobre dinheiro. Não sobre como economizar nas compras ou fazer o salário render, mas sobre como administrar milhões em orçamentos públicos, planejar políticas econômicas e comandar a máquina fiscal de um município inteiro.
É isso que se propõe o “Elas Governam – Lideranças femininas na gestão do orçamento e das finanças públicas”. O nome pode soar como campanha institucional, mas o encontro é real, nacional, e pela primeira vez saiu de Brasília. Veio parar em Campo Grande como quem quer mudar o mapa da conversa sobre poder no Brasil.
Ali, longe do centro do país, prefeitas, secretárias da Fazenda e gestoras de políticas para mulheres dividiram o mesmo palco e, mais importante, os mesmos dilemas: como governar em meio a cortes, pressões, desigualdades e planilhas? Como fazer política num país onde as mulheres comandam só 13% das prefeituras, mesmo sendo a maioria da população?
Sandra Amarilha tem o tipo de fala que começa suave e termina em argumento. Diretora-técnica do Sebrae/MS, ela trouxe à mesa um ponto de vista que costuma ficar à margem das decisões públicas:“O empreendedorismo feminino é comprovadamente uma poderosa ferramenta de autonomia financeira para as mulheres.”
Com mais de 15 anos de atuação nessa frente no Mato Grosso do Sul, ela insiste que o tema não é só sobre mulheres que abrem empresas, mas sobre governos que criam ambientes para que isso aconteça. “É fundamental que as lideranças públicas estejam de fato conectadas com políticas que promovam um ambiente favorável ao empreendedorismo feminino”, completou.
No palco do evento, as falas ganhavam corpo. A anfitriã, prefeita Adriane Lopes, foi direta ao romper com a pauta esperada: “Geralmente, em espaços de liderança feminina, o foco acaba sendo em violência ou pautas de gênero. Mas hoje mostramos que as mulheres também têm competência para debater gestão fiscal e propor soluções concretas para os municípios.”
Se a frase soa como um recado, é porque é mesmo. As prefeitas que vieram a Campo Grande não estavam ali para falar de violência doméstica, maternidade ou saúde reprodutiva — temas importantes, mas que quase sempre aprisionam o debate feminino. Elas queriam discutir planejamento, captação de recursos, orçamento anual, equilíbrio fiscal, investimento em infraestrutura e o tal do superávit primário.
Ana Angélica Fontanari, secretária-executiva da Mulher da capital sul-mato-grossense, leu a cena com clareza: “A importância desse evento é enorme. Pela primeira vez uma reunião de prefeitas em nível nacional é realizada fora de Brasília.”
Ela sabe o que isso significa: levar o centro do poder para outras mãos, outras vozes, outros sotaques.
O Brasil tem 5.569 prefeituras. Apenas 727 são comandadas por mulheres. Em algumas dessas cidades, as prefeitas não têm sequer apoio de suas câmaras municipais. Noutras, foram eleitas por votação apertada e governam à base de negociação. Quase todas enfrentam desconfiança, isolamento político e pouca visibilidade nacional.
Foi por isso que Márcia Conrado, prefeita de Serra Talhada (PE) e presidente da Comissão de Prefeitas da Frente Nacional de Prefeitos, subiu ao microfone com um tom de quem veio para somar — e resistir: “A Comissão de Prefeitas é um espaço estratégico para debatermos políticas, liderança e experiências. Tenho certeza de que o ‘Elas Governam’ será um sucesso e que a Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos vai nos garantir a liderança necessária para que possamos não apenas falar das desigualdades, mas também mostrar nosso potencial.”
Aos poucos, o evento foi costurando um discurso coletivo que ainda está em construção no Brasil: o da governança feminina aplicada às finanças públicas. Porque, sim, elas também falam de dívida ativa, arrecadação, repasse federal, Lei de Responsabilidade Fiscal. E o fazem com clareza, embasamento e uma dose de indignação por nunca terem sido chamadas antes.
Michele Roncalio, secretária da Fazenda de Florianópolis e presidente da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (ABRASF), traduziu isso em números.
“Trazer o debate sobre finanças públicas a um espaço de liderança feminina amplia a visão sobre o papel das gestoras. Captar recursos para políticas públicas essenciais também significa proteger comunidades vulneráveis.”
Ela lembrou que equilibrar contas diante das demandas de saúde, educação e segurança é um jogo de xadrez, e que mulheres têm jogado essa partida com menos peças no tabuleiro.
Ao final do evento, não houve discursos inflamados nem promessas revolucionárias. Mas ficou claro que mais mulheres em cargos de liderança mudam o foco, o tom e a agenda da política pública. E que a economia, tão tratada como assunto masculino, também é território delas.
Num país onde tantas vezes as mulheres são chamadas a governar o que sobra, elas agora querem governar também o que chega.