Como um voo com uma criança autista me ensinou mais sobre empatia do que qualquer palestra
Experiência durante voo revela desafios enfrentados por famílias com crianças autistas e mostra a importância da empatia e de políticas mais acessíveis.
OPINIÃO DO LEITORDurante um voo de volta da Bahia para São Paulo, tive uma experiência que transformou minha forma de enxergar o outro. Eu, advogada e mãe de três filhos, embarquei como qualquer passageira: cansada, cheia de planos mentais e julgamentos silenciosos.
Ao me sentar, percebi que ao meu lado estavam uma mãe e seu filho, de cerca de cinco anos. Ele usava chupeta e jogava no celular com o som alto. Confesso que, num primeiro momento, julguei. Era uma criança grande usando chupeta. O barulho me incomodava. Tudo ali parecia fora do lugar.
Pouco depois, uma comissária veio pedir que diminuíssem o volume. Vi a mãe se esforçando para convencer o filho, que resistia. Ela dizia com calma: “A moça vai vir brigar com a gente”, referindo-se à aeromoça. Em seguida, apontou para minha filha de colo: “A neném está querendo dormir, ela está assustada com o barulho.” Eu, que não havia reclamado de nada, fiquei tocada com o cuidado dela. Mesmo sem eu dizer uma palavra, ela tentava proteger todos ao redor.
Durante a viagem, essa mãe foi surpreendentemente gentil comigo. Ofereceu ajuda quando viu minha dificuldade com minha bebê, abriu um tapeware cheio de lanches e me ofereceu cookies, bolachas, chocolates. Disse que o filho era seletivo para comer e por isso levava sempre o que ele gostava. Mais tarde, entendi que aquele cuidado todo era parte da preparação de alguém que enfrenta desafios diários que a maioria de nós desconhece.
Eu fazia um barulho de chiado para ajudar minha filha a dormir — aquele som que imita o útero.Fiquei preocupada se aquilo incomodaria o menino. Ela, com toda tranquilidade, respondeu: “Esse barulho não incomoda ele.” Estava claro que ela conhecia cada reação do filho, cada possível desconforto, e fazia o possível para manter tudo sob controle.
Em um gesto de retribuição, ofereci um dos meus fones Bluetooth. Ela agradeceu, mas explicou: “Ele não usa. Eu até queria que ele usasse, mas ele não consegue.” Nesse momento, me senti deslocada. Como se minha tentativa de ajudar mostrasse o quanto eu ainda estava fora daquela realidade. Foi aí que notei o crachá no pescoço dela, com quebra-cabeça colorido. Até então, eu não tinha ligado os pontos. Ele era autista.
Comentei que, como advogada, lembrava de um direito garantido por lei — o desconto na passagem aérea para acompanhantes de pessoas com deficiência. Ela respondeu: “Eu sei. Tenho tudo que eles pedem. Ele já passou por vários especialistas, neurologistas, médicos. Tenho laudo, tudo. Mas tem que ligar, esperar, mandar documento… tudo demora. Acabo comprando a passagem sem o desconto.” Foi ali que caiu a ficha: os direitos existem, mas muitas vezes são inviáveis na prática.
A referência legal é a Resolução nº 280 da ANAC, que garante pelo menos 20% de desconto para o acompanhante de pessoas com deficiência que necessitem de assistência durante o voo, inclusive no caso de autismo. O benefício vale para voos nacionais e internacionais — mas exige contato direto com a companhia aérea e envio prévio de documentos.
Essa mãe me contou ainda que sempre se hospeda no mesmo hotel, pois os funcionários já conhecem o filho. E que, para ele comer, é preciso preparar um patinho moído — senão, ele não aceita nenhum outro alimento.
Foi então que pude retribuir com uma pequena dica. Contei sobre uma maquininha chamada Beaba, que já usei com meu primeiro filho para triturar papinhas. Ela não conhecia. Mostrei pelo Google, usando o wi-fi do avião. Ela ficou encantada. Ali, naquele voo, senti que havia algo ainda maior acontecendo: uma troca real.
Essa experiência me mostrou como é importante ouvir. Observar. Escutar de verdade. Aquela mãe não precisava apenas de paciência alheia — ela precisava de uma sociedade mais consciente. De companhias aéreas mais preparadas. E de menos julgamentos apressados, como os meus no início do voo.
Vi, naquele menino, muito mais do que o barulho do celular. Vi uma criança tentando se acalmar. Vi uma mãe incansável, generosa, inteligente, que cuida, educa, negocia e resiste.
E percebi que empatia não se aprende só com livros. Às vezes, ela vem de um lugar inesperado — como uma poltrona de avião.
(*) A autora, Rafaela de Queiroz Rodrigues da Cunha Feitosa, é advogada com atuação destacada em casos relacionados a transporte aéreo e direitos do passageiro. Pós-graduada em Direito das Famílias (EPD-SP) e em Direito e Processo do Trabalho (Uniderp).
(*) Nota de serviço - Passageiros com autismo que precisem de assistência especial durante o voo têm direito a viajar acompanhados por um responsável, que deve receber desconto mínimo de 20% na passagem, conforme a Resolução nº 280 da ANAC.
O benefício é válido para voos nacionais e internacionais e se aplica exclusivamente ao acompanhante. Para utilizá-lo, é necessário apresentar documento que comprove a condição do passageiro e a necessidade de assistência.
A solicitação deve ser feita diretamente junto à companhia aérea, com antecedência mínima de 72 horas do embarque.
Mais informações estão disponíveis em: www.gov.br/anac.