Tribunal na Itália questiona validade de lei de cidadania italiana e envia à Corte Constitucional
Juiz contesta aplicação retroativa de regras que restringem concessão de cidadania por descendência
MUNDODecisão do Tribunal de Turim, na Itália, abriu um novo capítulo na discussão sobre a cidadania italiana por descendência. O juiz responsável por um processo movido por uma família venezuelana decidiu submeter à Corte Constitucional o questionamento sobre a validade da nova legislação aprovada em maio, que restringe o direito apenas a filhos e netos de italianos sem dupla nacionalidade.
O ponto central da controvérsia é a aplicação da nova regra para processos protocolados após 28 de março deste ano, data da publicação do decreto. O magistrado considerou que a norma, por alterar um direito adquirido, só poderia ser válida para descendentes nascidos depois da publicação — e não para quem entrou com o pedido posteriormente.
Com isso, o juiz afirmou que, pela legislação anterior, o pedido seria aceito. Já pela nova norma, seria negado. Diante do impasse, decidiu não julgar o mérito do processo e enviou a questão à Corte Constitucional, que deve avaliar se há violação da Carta Magna italiana.
Mudança na lei e impacto para descendentes - A nova regra, aprovada como lei pelo parlamento italiano e sancionada pela Presidência da República, exclui do direito à cidadania os descendentes que tenham nacionalidade de outro país. Com isso, milhões de ítalo-brasileiros e ítalo-argentinos ficaram, em tese, impedidos de obter o reconhecimento da cidadania por via judicial.
Entre os especialistas, a decisão do tribunal foi recebida como sinal de resistência. O jurista David Manzini, da Nostrali Cidadania Italiana, classificou como “extraordinária” a rapidez com que o juiz levantou a questão de inconstitucionalidade. “Acreditamos que outros magistrados devem seguir o mesmo caminho”, afirmou.
Para o advogado Fábio Gioppo, da Gioppo & Conti, a decisão reacende a esperança de milhares de descendentes que tiveram o direito ameaçado com a nova lei. “É um precedente importante para quem ainda sonha com a cidadania”, disse.
Criada em 1956, a Corte Constitucional italiana é responsável por garantir que todas as leis estejam em conformidade com a Constituição de 1948. O julgamento da nova lei pode criar um precedente obrigatório para os demais tribunais do país.
Enquanto isso, outras cortes poderão interpretar os pedidos de forma diferente, mas, assim que a Corte Constitucional se posicionar, essa decisão deve unificar os critérios. Ainda não há data marcada para a audiência, mas há expectativa de que o julgamento ocorra ainda neste ano.
Segundo Manzini, é provável que os juízes optem por adiar os processos à espera do posicionamento da corte superior. “O assunto ganhou relevância, o que pode acelerar o trâmite.”
Entenda as novas exigências - As novas regras impõem barreiras inéditas para o reconhecimento da cidadania italiana. Agora, apenas filhos e netos de italianos que não tenham outra nacionalidade podem solicitar o reconhecimento automático.
Descendentes com dupla cidadania só podem transmitir o direito aos filhos se morarem legalmente na Itália por pelo menos dois anos antes do nascimento da criança. Para quem já tem filhos e nunca viveu no país, a regra inviabiliza o processo.
Há exceções previstas para menores de idade. Se os pais forem italianos nascidos fora da Itália, devem declarar, dentro de um ano após o nascimento, a vontade de transmitir a cidadania. Caso isso não ocorra, o menor que viver por dois anos seguidos na Itália poderá solicitá-la.
O decreto ainda estabeleceu um prazo de transição até 31 de maio de 2026 para pedidos referentes a filhos de italianos menores de 18 anos, desde que um dos pais já tenha a cidadania ou tenha solicitado até 27 de março de 2025.
Com a nova legislação, o governo italiano busca reduzir o volume de processos que sobrecarregam os consulados e o sistema judiciário, além de coibir fraudes no reconhecimento da cidadania por via administrativa.
Em 2023, mais de 20 mil brasileiros e 30 mil argentinos conseguiram obter o reconhecimento. Brasileiros e argentinos lideram a lista de requerentes por vínculo de sangue com imigrantes italianos.
Enquanto a Corte Constitucional não julga o caso, incertezas jurídicas permanecem. Mas, para muitos especialistas e famílias interessadas no processo, a decisão de Turim é vista como o início de uma possível reviravolta.