Ricardo Eugenio | 31 de janeiro de 2025 - 11h05

TJMS lança coleção digital de livros e mergulha na memória de seus juízes e desembargadores

Projeto "Rastros da História" resgata relatos pessoais e trajetórias institucionais, revelando um Judiciário tão humano quanto suas decisões

BIOGRAFIAS
O presidente do TJMS, Des. Sérgio Fernandes Martins, durante o lançamento da coleção digital Rastros da História, ressaltando a importância de preservar a memória do Judiciário sul-mato-grossense. - (Foto: Divulgação)

Era para ser mais uma solenidade de inauguração – dessas em que discursos sobre eficiência e modernização quase sempre monopolizam a fala. Mas na manhã desta sexta-feira (31 de janeiro), enquanto autoridades acompanhavam a reestruturação das Varas do Fórum de Campo Grande, o presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), Sérgio Fernandes Martins, preferiu invocar o passado.

No auditório, diante de juízes e desembargadores, ele apresentou a coleção digital de livros Rastros da História, uma homenagem à trajetória do Judiciário sul-mato-grossense, contada por aqueles que viveram, dia após dia, a burocracia e o peso das decisões. “Preservar a história da Justiça de Mato Grosso do Sul é guardar a identidade de um povo”, disse, com a solenidade própria de quem sabe que não está apenas falando de papel.

A coletânea – produzida pela Secretaria de Comunicação do TJMS – não é apenas um inventário de datas e marcos administrativos. São três livros que resgatam biografias, discursos, memórias pessoais e os momentos que transformaram os corredores do tribunal em espaços de história viva.

Três livros, três tempos - O primeiro volume, Gestões, percorre a linha do tempo das presidências do TJMS. Em cada capítulo, breves biografias dos presidentes, trechos de discursos de posse e os principais marcos de suas gestões. “Não é só uma questão de quem liderou, mas como cada um interpretou o papel de gerir o Judiciário em seu tempo”, explicou um dos organizadores.

O segundo volume, 2º Grau, é um levantamento minucioso das trajetórias dos 89 desembargadores e desembargadoras que ocuparam a corte desde sua criação, em 1º de janeiro de 1979. Mais do que uma listagem, o livro tenta capturar os perfis que, juntos, ajudaram a moldar as decisões judiciais no estado.

Mas é o terceiro volume, 1º Grau, que provoca os momentos de maior emoção: relatos pessoais de 55 juízes de Mato Grosso do Sul, em primeira pessoa. São histórias que vão da infância até os dias de toga, costuradas pela narrativa de quem encontrou no direito não apenas uma carreira, mas uma vocação.

Confira a íntegra das obras no Portal da Memória do TJMS.

Quando a história é contada pelos seus protagonistas - Nas páginas do 1º Grau, cada juiz revive suas memórias. Alguns relatam os desafios de trabalhar em comarcas pequenas, onde todos os rostos eram familiares – e os conflitos, muitas vezes, também. Outros falam da primeira audiência, do medo de errar, da difícil arte de equilibrar empatia e imparcialidade.

“A primeira sentença que dei não foi a mais difícil, mas foi a que me fez perder o sono”, narra um dos magistrados, ao relembrar um caso de direito de família. “Ali, entendi que nem sempre a lei acalma.”

O presidente do TJMS, Sérgio Martins, acredita que essa abordagem humana é essencial para compreender o Judiciário como algo além de processos e carimbos. “Esses relatos revelam o lado humano por trás da toga. É a história de juízes que não apenas aplicaram a lei, mas viveram a realidade dela.”

Os desafios das comarcas do interior - Para muitos magistrados, a lembrança mais viva é a das comarcas do interior. Uma juíza descreve como, ao chegar em uma cidade pequena, passou a ser vista quase como uma conselheira informal. “As pessoas vinham até a casa onde eu morava para pedir orientações, muitas vezes sem entender que aquilo não era um tribunal”, conta ela.

Outro juiz, que trabalhou em uma região de difícil acesso, relembra a precariedade da infraestrutura: “Minha sala tinha goteiras e um ventilador que mal funcionava. Mas o desafio maior era entender a comunidade. O que parecia simples no código de processo, ganhava novas camadas na vida real.”

Por que preservar a memória institucional ? - O projeto não é só uma homenagem aos veteranos. Para o presidente Sérgio Martins, ele tem uma função prática: inspirar novas gerações de magistrados e oferecer um espelho do que o Judiciário já foi e do que pode ser. “Quem entra no tribunal hoje precisa entender que está construindo a história, mesmo sem perceber.”

A coleção também responde a uma demanda de pesquisadores e estudiosos do direito que buscam documentar como decisões judiciais e lideranças moldaram a vida pública de Mato Grosso do Sul. O material está disponível gratuitamente no Portal da Memória do TJMS, com acesso aberto para consulta pública.

Quando o Direito se torna memória afetiva - Em uma das falas mais marcantes da solenidade, um desembargador aposentado resumiu o significado do projeto. “O direito foi minha profissão, mas também minha memória. Rever essas histórias é como revisitar a própria vida.”

Ao final do evento, a sensação era de que o Judiciário, normalmente associado à impessoalidade dos tribunais, havia revelado parte de sua alma. Não era apenas sobre o passado, mas sobre como ele continua a influenciar o presente.

Nos corredores do tribunal, enquanto alguns juízes comentavam os relatos emocionantes, uma secretária do fórum passou apressada com um maço de processos embaixo do braço. Como se a história nunca parasse de ser escrita.