Testamentos Vitais crescem em MS e refletem mudança na relação com o fim da vida
Entre debates éticos e números modestos, as Diretivas Antecipadas de Vontade emergem como símbolo de autonomia no Brasil onde a eutanásia é proibida
TESTAMENTO VITALQuando o poeta Antônio Cícero decidiu encerrar sua vida por meio de morte assistida na Suíça, em 23 de outubro, ele reacendeu um debate que, no Brasil, ainda está longe de um consenso: o direito de escolher o próprio fim. Aqui, onde a eutanásia é proibida, uma alternativa ganha espaço – os Testamentos Vitais, ou Diretivas Antecipadas de Vontade (DAVs).
No Mato Grosso do Sul, o número de registros nos Cartórios de Notas ainda é discreto: foram 45 DAVs até hoje, sendo seis apenas neste ano. Mas o impacto vai além das estatísticas. Trata-se de um documento que permite a qualquer pessoa, enquanto plenamente consciente, registrar suas preferências sobre tratamentos médicos, evitando que terceiros tomem decisões difíceis em seu lugar.
“O Testamento Vital é uma ferramenta de planejamento existencial. Ele dá ao indivíduo o direito de decidir sobre o próprio corpo, aliviando famílias e médicos de conflitos em momentos críticos,” explica Elder Gomes Dutra, presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção MS (CNB/MS).
Escolhas em um território nebuloso - As DAVs não são reconhecidas por uma legislação específica no Brasil, mas possuem respaldo da Resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM). O documento permite que pacientes recusem tratamentos que prolonguem a vida artificialmente, desde que respeitem os limites éticos e legais da medicina brasileira.
Por exemplo, uma pessoa pode optar por não ser submetida a ventilação mecânica ou alimentação via sonda em caso de doença terminal. Contudo, o documento não abre espaço para práticas como eutanásia ou suicídio assistido, que seguem fora do escopo jurídico no país.
Números modestos, impacto significativo - Apesar de ainda serem poucos os registros no estado, os Testamentos Vitais estão em ascensão no Brasil: são mais de 8,1 mil documentos registrados nacionalmente. Segundo Elder, isso reflete uma mudança cultural importante. “Há uma busca crescente por autonomia e dignidade no fim da vida. É um movimento silencioso, mas poderoso,” analisa.
Em Mato Grosso do Sul, os 45 registros podem parecer insignificantes frente à população, mas cada documento conta uma história de quem decidiu tomar as rédeas do próprio destino.
A era digital dos testamentos - Desde 2020, as DAVs podem ser feitas online por meio da plataforma e-Notariado. Com um Certificado Digital Notarial, obtido gratuitamente nos cartórios, o cidadão pode agendar uma videoconferência para registrar suas vontades sem sair de casa. O custo é o mesmo de um ato presencial, e o processo é rápido e seguro.
“O formato digital foi um divisor de águas, especialmente durante a pandemia. Facilitou o acesso e democratizou o processo,” avalia Elder.
Decidir antes que seja tarde - A crescente procura pelos Testamentos Vitais também levanta questões éticas e culturais. Em uma sociedade que evita falar sobre morte, a ideia de planejar os momentos finais pode parecer desconfortável. Para Marília, uma das poucas pessoas em Campo Grande que registrou uma DAV, é justamente esse desconforto que precisa ser enfrentado.
“É estranho pensar no meu fim, mas é libertador saber que não deixarei essa decisão para outra pessoa,” afirma ela, que preferiu não divulgar seu sobrenome.
O debate que permanece - Embora os Testamentos Vitais não abordem diretamente a eutanásia, o crescimento de sua popularidade reflete uma mudança na percepção sobre a autonomia individual. “O Brasil ainda não está pronto para discutir questões como a morte assistida. Mas o Testamento Vital é um passo importante para garantir o respeito às escolhas do paciente,” conclui Elder.
Por enquanto, o país caminha devagar, mas com firmeza, em direção a um futuro onde o desejo de cada um sobre seu corpo seja mais do que uma vontade – seja um direito.