Bloomsday: O Dia de Bloom em Campo Grande
Herbert Covre Lino Simão (*)
ARTIGOO Bloomsday começou a ser comemorado em Dublin, nos anos 50 do séc. XX, por um grupo de escritores, como uma homenagem a James Joyce, que havia publicado seu Ulysses em 1922.
“O aparecimento de Ulisses em 1922 foi um acontecimento aparentemente obscuro, pois o livro foi publicado em Paris por uma livraria americana, e a composição tipográfica foi feita, com muitos erros que permaneceriam décadas sem conserto, por um impressor de Dijon; logo em seguida, o romance seria proibido na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos por ser considerado obsceno. Porém a obra foi difundida por toda parte, vindo a estimular boa parte da literatura experimental dos anos 20. ”Assim Malcolm Bradbury retrata o surgimento daquela que seria uma maiores obras da literatura universal.
A ação do romance transcorre no dia 16 de junho de 1904, como narra o poeta Haroldo de Campos: “No dia da graça de 16 de junho de 1904, o judeu-húngaro-irlandês Leopold Bloom (o Senhor Dom Flor) fez uma caminhada memorável pela cidade de Dublin, atravessada pelo rio Liffey. (Na vida real, essa foi a data em que o jovem Joyce se apaixonou por uma bonita camareira de hotel, Nora Barnacle, natural de Galway, sua futura mulher). A jornada junina de Bloom transfigurou-se num romance (‘para acabar com todos os romances’), o Ulysses, que dividiu as águas da literatura moderna.”
O monólogo interior, tão presente em Ulisses, foi inaugurado n’O Retrato do Artista quando Jovem, obra na qual Joyce “introduz na literatura contemporânea o uso sistemático do monólogo interior, recurso que se torna ainda mais radical quando aplicado em um personagem infantil e sem maiores recursos expressivos”, destaca Rodrigo Lacerda.
Aliás, a partir da leitura do Retrato do Artista Quando Jovem é que se pode perceber a relevância do período que vai de sua infância até 1904 – quando ele conhece Nora Barnacle.
“Quando Joyce começou a escrever, sua intenção era pura e simples: exprimir seus próprios sentimentos honestamente e dizer a verdade sobre o mundo que conhecia. Mal, porém, havia começado, percebeu que seus sentimentos faziam parte daquele mundo e, portanto, que aquele mundo fazia parte dele próprio. Para dizer a verdade completa tinha também de retratar-se fielmente.” É assim que o crítico S. L. Goldberg narra a evolução do artista, que ao invés de escrever uma autobiografia de ficção, cria um drama autobiográfico.
Há um fragmento d’O Retrato do Artista quando Jovem que antecipa a trajetória de Leopold Bloom: “Sê bem-vinda, ó vida! Eu vou ao encontro, pela milionésima vez, da realidade da experiência, a fim de moldar, na forja da minha alma, a consciência ainda não criada da minha raça.”
A celebração do Bloomsday no dia 16 de junho também é a celebração do amor, conforme a interpretação de Ken Monaghan, sobrinho de James Joyce.
Richard Ellmann, autor da melhor biografia de Joyce, diz que “...A experiência do amor era para ele [James Joyce] na verdade quase nova, embora muitas vezes a tivesse avaliado na imaginação.”
Nora Barnacle, a jovem alta e bonita, de cabelo castanho avermelhado, foi homenageada por James Joyce: “...Estabelecer o Ulisses nessa data [16 de junho] foi o mais eloquente tributo indireto de Joyce a Nora, reconhecimento do efeito decisivo dessa ligação com ela na vida dele. Em 16 de junho, como ele perceberia mais tarde, Joyce entrava em relação com o mundo ao seu redor e deixava para trás a solidão que sentia desde a morte da mãe.
O monólogo de Molly Bloom, no último capítulo de Ulisses, expressa a dimensão desse amor: “eu fui uma Flor da montanha sim quando eu pus a rosa no cabelo que nem as andaluzas faziam ou será que hei de usar uma vermelha sim e como ele me beijou no pé do muro mourisco e eu pensei ora tanto faz ele quanto outro e aí pedi com os olhos pra ele pedir de novo sim e aí ele me perguntou se eu diria sim minha flor da montanha e primeiro eu passei os braços em volta dele... e sim eu disse sim eu quero Sim.”
James Joyce merece ser celebrado sempre, ainda que tardiamente. José Antônio Arantes relembra que “...A celebração mesmo veio postumamente: nos anos 60, Sylvia Beach, proprietária da Shakespeare & Co., de Paris, fez da Martello Tower um museu de Joyce; o irlandês David Norris, senador e conhecido acadêmico joyciano do Trinity College, recém-criou em Dublin o Centro Cultural James Joyce; e o ‘Bloomsday’, o 16 de junho de 1904, dia em que se passa a ação de Ulysses, virou curiosa atração turística da capital da República da Irlanda e passou, o que também é curioso, a ser comemorado em algumas partes do mundo, até mesmo no Brasil.”
A celebração do primeiro Bloomsday, no Brasil, aconteceu na cidade de São Paulo, há mais de trinta anos, como consta da Ata de Fundação da Associação Brasileira dos Amigos de James Joyce.
Ainda a respeito da celebração do Bloomsday no Brasil, gostaria de registrar, em caráter pessoal, que tive a alegria – joy, Joyce -, de participar de duas edições do Bloomsday paulistano. Nos anos de 1994 e 1995 presenciei as múltiplas leituras multilíngues, sob a coordenação de Haroldo de Campos e Munira H. Mutran. Ouvi o Multijoyce em inglês, português, francês, alemão, japonês, espanhol e italiano. Ouvi música irlandesa. Comemorei Ulisses, Finnegans Wake e a poesia de Joyce.
A obra de Joyce merece ser lembrada, relembrada e celebrada, sempre. Aliás, o próprio Joyce, quando lhe perguntaram sobre o significado de Ulisses, explicou: “Coloquei no livro tantos enigmas e quebra-cabeças que os estudiosos se manterão ocupados durante séculos, discutindo a respeito do que eu quis dizer, e esta é a única maneira de garantir nossa imortalidade.”
Quero compartilhar o desejo expressado por Anthony Burgess: “...o desejo de que em breve todo mundo esteja com Joyce, vendo nele não enigmas tortuosos, obscenidade e jesuitismo aloprado, mas uma das mais vigorosas afirmações do valor do homem que este século nos legou.”
Assim, em 2018, junto com o amigo Carlo Fabrizio Campanile Braga, apoiados por Júlio Fraide, do Irlandês Pub, iniciamos nossa odisseia joyceana, realizando o primeiro Bloomsday em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, com acompanhamento de música irlandesa com a banda Dublin Rovers. Celebramos em 2019. Em 2020, comemoramos o mestre do distanciamento social, em plena pandemia da COVID-19. Faraway, So Close foi o tema de 2021, ainda sofrendo com a pandemia: distantes, mas próximos. Agora, em 2022, comemoramos 5 anos de Bloomsday, em pleno centenário da publicação de Ulysses.
Para concluir, falo como Edmund Wilson, que considerava Ulisses a maior obra literária em língua inglesa do século XX, opinião compartilhada por muitos: “Joyce é, na verdade, o grande poeta de uma nova fase da consciência humana.”
*Professor de Filosofia do Direito da ESMAGIS – Escola Superior da Magistratura do Estado de Mato Grosso do Sul e da Faculdade INSTED. herbertcovre@linosimao.com.br