Por Herbert Covre Lino Simão | 04 de março de 2022 - 12h10

Visões da guerra provocada pela Rússia, esperança de paz na Ucrânia (¹)

Herbert Covre Lino Simão (²)

ARTIGO
Herbert Covre Lino Simão - (Foto: Reprodução)

A Tércio Waldir Albuquerque,
meu amigo internacionalista
“Men today are asking themselves increasingly insistently: can war be eliminated definitively? And if can, what are the remedies?
Norberto Bobbio (³)

A sociedade global despertou de sonhos intranquilos no último dia 24 de fevereiro, com a invasão da Ucrânia pelo exército da Rússia.

Mais uma guerra que começa, mas não se sabe como terminará, nem quando será seu fim.

Guerra e paz são temas recorrentes na reflexão de Celso Lafer filósofo, jurista e internacionalista, ex-chanceler do Brasil em tempos plenos de democracia. A partir do exame do pensamento de Norberto Bobbio, elaborou ensaios fundamentais para a compreensão da questão. (4)

Gostaria de acrescentar à reflexão teórica sobre os problemas da guerra, a intuição artística do pintor Lasar Segall, que vivenciou as duas grandes guerras do século XX.

Durante a Primeira Guerra Mundial, chegou a permanecer uma temporada confinado na cidade alemã de Meissen. Entre 1928 e 1932 viveu em Paris, retornando ao Brasil para, como espectador, acompanhar a tragédia da Segunda Guerra Mundial.

Celso Lafer, o crítico de arte, escreveu sobre as Visões de Guerra 1940-1943, de Lasar Segall. (5)

Após uma pertinente reflexão sobre a dicotomia guerra/paz, ressalta o tema das grandes interrogações sobre as razões ou falta de razões para a presença do mal no mundo, para então associá-lo às artes plásticas do século XX, com impacto sobre a obra de Lasar Segall: “...que foi um artista comovidamente atento aos grandes dramas da humanidade como se pode ver por sua preocupação em retratar tipos humanos social e politicamente desfavorecidos, entre eles incluídas as vítimas das guerras." (6)

Ao considerar a influência do expressionismo alemão na obra de Segall, Celso Lafer identifica a técnica empregada pelo artista: “...técnica da deformação, que caracterizou o expressionismo como movimento artístico, um meio de exprimir os duros fatos da existência humana no século XX, para articular, assim, uma arte de protesto." (7)

Lasar Segall, ao recordar sua primeira viagem ao Brasil, afirmou: “Sempre conservei muito abertos os olhos". (8) É esse olhar segalliano que Celso Lafer identifica em dois desenhos que: “...podem exprimir o horror diante da guerra. São duas figuras de mulheres agoniadas, cujos olhos espelham o que estão vendo: os abatidos pela guerra,” (9)

As vítimas da guerra são, ex parte populi, como diria Celso Lafer: “Nos desenhos do ‘caderno’ e nos óleos nele inspirados, como também em suas gravuras, o que é mais constante em sua visão é a percepção das vítimas: mães e crianças; velhos; mortos ou refugiados; massacres; sobreviventes; campos com arames farpados; condenados." (10)

Com o olhar de crítico de arte, Celso Lafer identifica duas obras a óleo inspiradas no caderno Visões de guerra: “O óleo Êxodo I, de 1947, que está no acervo do Jewish Museum de Nova York, é uma transposição quase direta de um dos desenhos do caderno Visões de guerra 1940-1943. Em ambos, as pessoas agrupadas de tal maneira a sugerir a proa de um navio – tema recorrente em Segall – evocam a lembrança dos deslocados no mundo a singrar os mares em busca de um destino melhor. O óleo Êxodo II, de 1949, igualmente uma transposição quase direta de um dos desenhos do caderno Visões de guerra 1940-1943, também chama nossa atenção para o horror das pessoas que, não tendo lugar no mundo, não estão à vontade em lugar algum.” (11)

O olhar premonitório de Lasar Segall a respeito do destino dos judeus que não sobreviveram aos campos de concentração em consequência do Holocausto também foi detalhado por Celso Lafer a partir de desenhos do caderno: “Em um deles, temos pessoas agrupadas de tal forma a indicar a proa de um navio; nos outros dois, que são aquarelas, esse mesmo agrupamento de pessoas, de costas, em forma de proa de navio, afunda-se em direção a um espaço estreito entre dois muros, que é uma antevisão das câmaras de gás. "(12)

Ao concluir seu ensaio, Celso Lafer mostra que apesar de Segall retratar a guerra, a esperança de paz (13) também estava presente, ao dar destaque à pomba no caderno: em especial no único desenho no qual o olhar agoniado não está presente: “A pomba, no ‘caderno 1940-1943, está pousada e amparada por duas mãos humanas que a envolvem." (14)

Gostaria de acrescentar a essa análise uma nota pessoal: no final de 1994, em uma troca de cartões de boas festas e feliz ano novo, recebi de Celso Lafer o belo cartão ilustrado com a pomba da paz, com os dizeres: “...a paz não é um dado da natureza das coisas; é um construído humano a ser protegido pelas mãos do homem para que não se venha a ter novas e sempre trágicas recorrências dos males da guerra." (15)

As reflexões de Celso Lafer, assim como as visões de guerra de Lasar Segall refletem a agonia que todo ser humano sente com as vítimas da guerra, homens, mas principalmente idosos, mulheres e  crianças.

Assim, diante da realidade da guerra, gostaria de concluir com esperança na construção da paz para o povo ucraniano, fazendo cessar todos os males da guerra.

[¹] Comunicação preparada para a mediação da palestra do Professor Tércio Waldir Albuquerque, na Faculdade de Direito INSTED, sobre a invasão da Ucrânia pelo exército da Rússia, no dia 24 de fevereiro de 2022, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

[²] Professor de Filosofia do Direito na Faculdade INSTED e na ESMAGIS - Escola Superior da Magistratura do Estado de Mato Grosso do Sul. Auditor Estadual de Controle Externo do TCE-MS.

[³] BOBBIO, Norberto. Peace, War and International Politics. Torino : Nino Aragno Editore, 2007, p. 55. À questão sobre a procura dos remédios para o problema da eliminação da guerra, isto é, o pacifismo, Bobbio apresenta a seguinte resposta: “In the immense and confuse mass of projects, attempts, proposals, three principal strands may be distinguished, according to which the remedy for war consists in acting on the means, on institutions, or men.”

[4] LAFER, Celso. Norberto Bobbio: trajetória e obra. São Paulo : Perspectiva, 2013. A conferência O Problema da Guerra e os Caminhos da Paz na Reflexão de Bobbio foi pronunciada em 1º de setembro de 1982, na UnB, em simpósio sobre a obra de Norberto Bobbio. O artigo Guerra, Direito e Poder no Golfo Pérsico foi publicado no Caderno Ideias do Jornal do Brasil em 3.2.1991. Bobbio e as Relações Internacionais é o prefácio ao livro O Terceiro Ausente: Ensaios e Discursos Sobre a Paz e a Guerra. Paz e Guerra no Terceiro Milênio foi publicado em italiano no livro Il futuro di Norberto Bobbio, de 2011.

[5] Celso Lafer escreveu “Visões de Guerra 1940-1943, de Lasar Segall” para o catálogo da exposição realizada no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, de 5 de novembro a 6 de dezembro de 1991. Trata-se da segunda incursão crítica a respeito da obra do artista, novamente provocado por uma exposição de suas obras. O caderno Visões de guerra 1940-1943 é um conjunto de 74 desenhos a aquarela, guache e tinta a pena e pincel, medindo em média 15 x 20 cm. Segundo Celso Lafer, Segall imaginou publicá-lo em forma e livro, mas só foi publicado e exposto em seu conjunto pela primeira vez em 2012. LAFER, Celso. Lasar Segall: múltiplos olhares. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 2015, p. 57.

[6] LAFER, Celso. Lasar Segall: múltiplos olhares. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 2015, p. 53.

[7] LAFER, Celso. Lasar Segall: múltiplos olhares. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 2015, p. 55.

[8] Depoimento de Segall à Revista Anual do Salão de Maio, nº 1, 1939. In D’Horta Beccari, Vera. Lasar Segall e o modernismo paulista. SP : Brasiliense, 1984. p.249.

[9] LAFER, Celso. Lasar Segall: múltiplos olhares. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 2015, p. 57.

[10] LAFER, Celso. Lasar Segall: múltiplos olhares. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 2015, p. 57.

[11] LAFER, Celso. Lasar Segall: múltiplos olhares. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 2015, p. 58.

[12] LAFER, Celso. Lasar Segall: múltiplos olhares. SP: Imprensa Oficial do Estado, 2015, p. 59.

[13] O historiador de arte Julian Gállego, escrevendo sobre a exposição no M.A.M. de Paris, em 1959, também percebeu nas obras com tema da guerra, um profundo desejo de paz: “Da visita a esta exposição, mais do que os quadros expressionistas da primeira ou da última fase, embora sejam os mais ricos plasticamente, mais talvez do que as gravuras (apesar da alta categoria), detivemo-nos na frente dos quadros e, em especial, dos desenhos em que Segall protesta com todas as suas forças, com uma eloquência impregnada de verdade e de dor, contra a guerra, a tirania e a crueldade. Se existissem prêmios da Paz para a pintura, o primeiro devia ser atribuído postumamente, a este artista sincero e angustiado pelo sofrimento alheio que se chamou Lasar Segall.” Gállego, Julián. Segall no M.A.M. de Paris. O Estado de S. Paulo, 19 de abril de 1959,p. 10.

[14] LAFER, Celso. Lasar Segall: múltiplos olhares. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 2015, p. 60.

[15] No cartão de boas festas consta a seguinte observação: “Desenho do caderno ‘Visões de guerra 1940- de Lasar Segall