Gustavo Bonotto | 16 de maio de 2021 - 11h00

'Fugir para sobreviver': os caminhos de um refugiado em Mato Grosso do Sul

Reportagem apresenta a realidade de venezuelanos que precisam sair de seu país de origem em busca de melhores condições de vida

IDENTIDADE
Enzo (de camiseta verde) e Oswaldo (de vermelho), contam as dificuldades para chegar em Campo Grande - (Foto: Gustavo Bonotto)

A crise humanitária que se instalou na Venezuela não é de exclusiva responsabilidade do governo de Nicolas Maduro, embora tenha se agravado durante o seu mandato. Há um contexto de mais de 50 anos de dominância entre as duas administrações divididas entre o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (COPEI), também conhecido por Partido Social Cristão, que ficou no comando por 40 anos e depois com a era Chavista, com Hugo Chávez no poder por 14 anos e Maduro, que está desde 2013 no comando do país.

Segundo a socióloga e professora Juliane Corrêa, que morou por três anos na Venezuela, as causas para o cenário atual não são apenas pelo embargo ao petróleo venezuelano, ou por conta do sistema ditatorial de Maduro. “Mas há um universo de razões incalculáveis que se conjugam e as consequências históricas das decisões dos últimos 50 anos. Primeiro, a autonomia democrática, de escolha popular de Chaves e Maduro são exclusivas do povo venezuelano. Respeitar a história, a cultura e a política de um país e a sua soberania é a prática de qualquer sociólogo e diplomata”, disse. A autonomia econômica também é uma variante no estado atual da crise. A falta de abastecimento ocasionado pela hiperinflação que somente em 2018 foi de 130.060%, faz com que a renda do trabalhador diminua cada vez mais.

O governo tem constantemente aumentado o salário mínimo no País, na tentativa de conter os aumentos, mas essas ações estão levando apenas para um breve colapso da economia. Com os atuais 300 mil bolívares soberano, salário mínimo vigente, é possível comprar 1 kg de queijo, ou 7 litros de leite, ou 14 kg de arroz, ou 6 kg de frango picado ou 8 dúzias de ovos, isto é, insuficiente para manter qualquer família.

A falta de comida para pôr no prato, que em muitas ocasiões se resumia em uma diária, fez com que o ajudante de mecânica Enzo Caraballo, 30, e o metalúrgico Oswaldo José Fuentes Zambrano, 31, deixassem sua cidade natal, Ciudad Bolívar na Venezuela, rumo ao Brasil para conseguir melhores condições de vida para eles e para suas famílias. Enzo veio para o Brasil há mais tempo e teve um percurso diferente de Oswaldo. A sogra dele foi a primeira a sair da Venezuela e, enquanto ela estava no refúgio da fronteira, conseguiu dinheiro para enviar ao genro e ao neto, para que viessem de ônibus até Pacaraima, no estado de Roraima, cidade brasileira da fronteira.

A rota até Ciudad Bolívar foi feita de ônibus por Enzo, mas a maioria das pessoas a realizaram a pé por falta de recursos, e, se caso tivessem sorte, por carona. Ao chegar na aduana, Enzo precisou esperar por dois dias para a regularização da entrada como refugiado. Depois da liberação, o pior momento foi ter que passar duas semanas dormindo na rua, sem banho, sem higiene, sem alimentação adequada e com uma criança pequena, enquanto abria vaga no refúgio. Mas a espera compensou e logo conseguiram se instalar na tenda montada pelo exército. A parada não durou muito, em pouco tempo receberam uma ótima notícia: um voo para o Rio Grande do Sul. A promessa foi que lá teriam apoio pelos próximos quatro meses. Enzo não pensou duas vezes e embarcou rumo às novas “terras desconhecidas”.

Nem tudo deu certo - Passado o período permitido em permanecer no refúgio, todos os que estavam alojados, inclusive Enzo, tiveram que arrumar outro local para morar. Por falta de emprego e ainda sem dominar a língua portuguesa, teve que partir rumo a Campo Grande, onde já estavam morando a mãe de sua esposa e o cunhado. Tentar a vida no Rio Grande do Sul seria arriscado e poderia novamente ir para as ruas por falta de recursos financeiros. Entre o refúgio em Pacaraima e a residência em Campo Grande, Enzo já está há 10 meses morando no Brasil.

O idioma ainda é o grande desafio, não para entender, mas para falar. Esse fator atrapalha a busca por serviços formais, com carteira assinada, obrigando-o a ir às ruas pedir ajuda financeira ou até mesmo o que ele tanto quer, um trabalho digno. No caso do Oswaldo, o percurso até Campo Grande foi um pouco penoso. Também de Ciudad Bolívar, teve que fazer o mesmo caminho que Enzo para a fronteira, rumo a Pacaraima. Sua parada durou apenas um dia, necessária para a regularização da entrada no país. Com a documentação em mãos, partiu para a cidade de Boa Vista, no estado de Roraima. Enquanto esperava mais dinheiro da família para continuar a viagem, permaneceu na rua durante um longo dia.

Após esta espera, pôde finalmente continuar a viagem rumo à Manaus, no Amazonas. Ao chegar na cidade, houve mais uma demora, pois o ônibus para Porto Velho, capital de Rondônia, sairia apenas na sexta-feira. Mais uma vez teve que esperar para poder seguir. De todo o trajeto, apenas o trecho de Porto Velho à Campo Grande foi o mais tranquilo, por não ter que parar nas cidades para troca de veículo. O único incômodo foi o cansaço de uma viagem tão longa. Oswaldo teve o apoio do seu sogro e do cunhado que chegaram primeiro em Campo Grande. Sua estadia deve ser longa na cidade, porque não pretende voltar tão cedo para a Venezuela. Com filho pequeno se adaptando à escola, a intenção é continuar em solo brasileiro e quem sabe no futuro, voltar a exercer o seu ofício de formação – a metalurgia.

Recomeço - Venezuela não será uma opção tão cedo para e Enzo e Oswaldo. A situação crítica em que se encontra o país deixa todos sem perspectivas de melhora. Para ambos, o momento é de procurar um trabalho formal, para ter mais segurança e ajudar os filhos e outros familiares que ainda não puderam vir para o Brasil. “Se você manda R$100,00 para lá, é suficiente para manter uma família pequena por até um mês”. A preocupação por quem ainda ficou é constante. Oswaldo acrescenta que deixou suas duas filhas, uma de oito anos e outra pequena, além dos pais e os irmãos.

Mas, como o momento é de recomeço, a hora é de lutar e reestruturar para trazer todos que lá ficaram. “Não é fácil viver tanto tempo com sua família e da noite para o dia deixar tudo”, relata. Entre o que mais sentem falta do país de origem, além da saudade dos familiares, é a culinária típica. A unanimidade é a “arepa”, uma massa de pão feito com milho moído ou com farinha de milho pré-cozido. Eles até tentaram reproduzir em Campo Grande, mas o milho que encontraram era “fraco” demais. Talvez por não conhecerem a cidade muito bem, foram aos supermercados e encontraram apenas o milho verde, diferente da Venezuela que utilizam para preparar a iguaria no estágio “seco”.

Outra tentativa frustrada foi fazer “tequeño”, uma espécie de palitos de queijo com massa frita. A receita não deu certo porque o queijo brasileiro é menos salgado que o venezuelano. Já para o fim do ano, estão planejando fazer a ceia com “hallaca”, um guisado envolto em uma massa empacotada em folhas de bananeira. Todos esperam que desta vez consigam ter um prato tradicional à mesa nas festas de dezembro.

Refugiados venezuelanos estão ilegais no Estado (Foto: Agência Brasil)

Os ambientes - A casa atual que residem está situada na rua mestre Estanislau Panatier, bairro Colibri, saída para São Paulo. São duas quitinetes de três cômodos cada, que abrigam um total de 11 adultos e quatro crianças, com idade entre seis meses e seis anos. Por falta de espaço, as varandas viraram dormitórios. Uns dormem na cama, outros em colchões espalhados pelo chão do quarto, da sala e até na cozinha, e ainda tem aqueles que se “aventuram” em sofás. Parece um ambiente difícil para se viver, mas é superado pelo fato de ter comida todos os dias. “Aqui, todos conseguem fazer as três refeições diárias, às vezes até mais, tem leite para as crianças tomarem e fraldas para o bebê de colo”, diz Oswaldo.

É um cenário totalmente oposto ao da Venezuela. Os únicos problemas encontrados em Campo Grande, conforme relatam, são o alto custo do aluguel e a exploração da mão de obra. O local onde residem, mesmo sem infraestrutura de moradia, custa R$ 900 mensal, R$ 450 por cada quitinete. No caso dos serviços temporários, as oportunidades que aparecem remuneram bem abaixo do valor ideal, como por exemplo, uma diária para passar roupa seria em média de R$ 100, mas por serem venezuelanos, querem pagar R$ 30 por um dia de trabalho.

Fora esses entraves, Enzo e Oswaldo são gratos por todas as ajudas que receberam por parte dos brasileiros. Até o momento não sofreram discriminação pela origem, apenas em um caso isolado, enquanto estavam pedindo dinheiro no semáforo, um motorista disse: “volta para a Venezuela”. “Estamos migrando para vários países e minha palavra é que não nos vejam como estorvo, hoje somos nós, amanhã não se sabe serão outros países que passarão o mesmo que estamos passando”, diz Enzo.

Cidadãos venezuelanos que vivem em Bogotá protestam contra eleições em seu país (Foto: Agência Brasil)

Caminhos - A Fraternidade Sem Fronteiras é um grupo de voluntários com objetivo de auxiliar na adaptação, acolhimento e encaminhamento ao mercado de trabalho das famílias e indivíduos que buscam refúgio no país. Além do projeto, “Brasil, um Coração que Acolhe”, que atende os refugiados Venezuelanos, a enti - dade realiza outros trabalhos, como a Orquestra Filarmônica Jovem Emmanuel, Retratos de Esperança e Nação Ubuntu Malawi. Elaine Oshiro, coordenadora regional do “MS Acolhe”, versão regional do “Brasil, um Coração que Acolhe”, conta que o projeto começou a atuar em Mato Grosso do Sul a partir de abril de 2018, alugando casas para ajudar a reestruturar os refugiados com a questão da burocracia e a adaptação de suas famílias, auxiliando na busca de empregos, colocando as crianças nas escolas e orientando na questão da documentação. “O fundador da Fraternidade, o filantropo Wagner Moura, recebeu informações na época, e percebeu que ninguém falava da situação da Venezuela nas gran - des mídias, por exemplo. Ninguém sabia que era tão grave a situação.

Ao conferir pessoalmente, ele viu que realmente a população estava em situação gravíssima, morrendo de fome. Ao visitar os hospitais, não havia medicamentos, e nem comida. Quem estava ali eram vítimas, morrendo por não terem nada. A situação era muito crítica, e viu-se a necessidade de criar a iniciativa”, afirma. E complementa que muitos refugiados não procuram ajuda após atravessar a fronteira, e acabam se aventurando por outros caminhos, como acontecem em casos de venezuelanos, que chegam sem nenhum trabalho coordenado.

As Forças Armadas também possuem experiência nas missões de apoio humanitário pelo mundo. Desde março de 2018, acontece a “Operação Acolhida”, uma missão de natureza humanitária em todo território nacional que já contou com mais de três mil militares. Segundo dados do Exército, em abril de 2019, havia 5.723 abrigados em Boa Vista, 878 abrigados em Pacaraima, 5.475 interiorizados em mais de 20 estados, 542 militares envolvidos e 16.988 refeições por dia, com o objetivo de descongestionar a fronteira brasileira.

Iniciativas - A Cruz Vermelha de Mato Grosso do Sul presta o suporte de voluntariado à “Operação Acolhida”. De acordo com o secretário geral Heubert Morinigo, o papel dessa rede filantrópica é espe - cífico em ajudar na recepção de imigrantes interiorizados pelo Exército, oferecendo suporte temporário, como cuidados com a limpeza do local, preparo da alimentação: café da manhã e jantar, orientações em situações de saúde e higiene, além de fornecer voluntários intérpretes. “Já fomos alertados por quatro vezes, mas os planos mudaram de última hora pois se trata de uma questão logística do próprio Exército. Existiu uma previsão de receber uma leva de 22 direcionamen - tos de venezuelanos para a região de Dourados, mas o acionamento foi desfeito horas antes”, disse.

Refugiados venezuelanos em Pacaraima (RR), uma das principais portas de entrada de imigrantes (Foto: Agência Brasil)

O professor João Fábio Sanches Silva desenvolve o “UEMS Acolhe”, com objetivo de ensinar o idioma aos imi - grantes e refugiados para incluí-los na sociedade. Esse trabalho é composto por dez turmas diferentes em várias localidades de Campo Grande, e atualmente conta com mais de 60 alunos de 20 nacionalidades, atendendo desde venezuelanos, colombianos, bolivianos e haitianos. “O projeto leva o acolhimento linguístico e humanitário, e o resultado de várias ações de extensão com um viés mais afetivo, tentando ser o mais rápido possível devido à necessidade que todos eles têm”, afirma. Já a Liga Acadêmica de Direito Internacional dos Refugiados (LADIR) é uma entidade sem fins lucrativos, vinculada à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (FADIR - UFMS).

As iniciativas abrangem todos os estrangeiros residentes ou em deslocamento pelo território nacional que se encontram em situação de vulnerabilidade. A LADIR tem como intuito a acolhida humanitária e a salvaguarda de Direitos Humanos, além de desenvolver vivências práticas, promover o ensino, a pesquisa, e a extensão, integrando-os com outras instituições de ensino e a comunidade externa.

Com a colaboração de Letícia Monteiro.