Nova tradução de Memórias Póstumas tem edição esgotada nos EUA
Nesta semana, já é possível comprar o livro no site da editora, tanto na versão impressa quanto na digital
GERALOs protestos contra a morte de George Floyd tinham acabado de completar sete dias nos Estados Unidos (EUA) – e continuariam levando norte-americanos às ruas em cidades de todo o país por semanas – quando o livro de um autor brasileiro foi lançado. Não era exatamente um lançamento. O autor morreu há 112 anos e o romance foi lançado em 1879. Resultado: a edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Asssis, lançado nos EUA pela Penguin Classics esgotou-se em um dia. Nesta semana, já é possível comprar o livro no site da editora, tanto na versão impressa quanto na digital.
O Memórias Póstumas de Brás Cubas lançado pela Penguin Classics, ou The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, como ficou a edição norte-americana, foi traduzido pela americana radicada no Brasil Flora Thomson-DeVeaux, que também assinou a introdução e é responsável pelas notas explicativas sobre o clássico de Machado. O livro tem prefácio assinado pelo escritor e editor David Eggers.
Em uma conversa com a Agência Brasil, Flora disse que o prefácio pode ter contribuído para Memórias Póstumas ter se esgotado em um dia nos Estados Unidos em meio a uma pandemia e a protestos raciais. O prefácio de Eggers foi publicado, antes do lançamento da tradução, na prestigiosa revista The New Yorker, que já teve entre seus colaboradores autores como Truman Capote e J.D. Sallinger. Outro fator, na opinião de Flora, também é a vontade do leitor dos EUA em procurar autores não brancos e que não façam parte do cânone norte-americano.
A tradutora também falou sobre a dificuldade de traduzir Machado de Assis e também por que aquele que é considerado o maior escritor da literatura brasileira não tem o mesmo reconhecimento no resto do mundo. “Certamente a demora na tradução não ajudou. Ele chega na língua inglesa com quase 70 anos de atraso”, disse Flora. “A gente está tentando recuperar esse atraso até hoje.”
Agência Brasil - Por qual motivo a senhora acredita que a nova tradução de Memórias Póstumas, que foi publicada nos EUA pelo selo Penguim Classics, vendeu tão bem a ponto de se esgotar em um dia?
Flora Thomson-DeVeaux - É um mistério que nem eu, nem a editora previmos, porque senão a Penguim teria feito uma primeira tiragem enorme. A gente ainda está tentando entender qual foi a alquimia que fez com que esse livro chegasse até às pessoas. Eu acho que teve dois movimentos, de certa forma complementares, de certa forma contraditórios. O prefácio do David Eggers foi publicado no site da New Yorker, que tem um alcance enorme, e a maneira como ele descreve o livro tem muita leveza, ele fala que é um dos livros mais espirituosos jamais escritos, fala do humor, da inventividade e, ao mesmo tempo, foi um momento, enfim ainda estamos neste momento, em que as pessoas estão procurando ler mais autores não brancos, não [fazem parte] do cânone norte-americano. Enfim, tem essa tentativa também da parte de muita gente de se educar, de sair da caixinha em termos de referências. Essa é uma interpretação minha, só analisando o que estava acontecendo naquele dia, mas acho que pode ter muita gente que foi atrás do livro para se distrair, talvez, desse momento tão difícil, e pode ter gente que foi atrás do livro para se educar. Eu acho que existe uma chance do romance ser recebido de maneiras muito diferentes por tais públicos. Portanto, é um fenômeno que, só com as leituras chegando, a gente vai entender melhor o impacto, entender melhor o que aconteceu.
Agência Brasil - Alguma coisa diferencia a tradução que você fez do Memórias Póstumas de outras que foram lançadas anteriormente nos Estados Unidos?
Flora - Eu estudei por extenso as outras traduções, então, posso apontar maneiras, elementos que diferenciam a minha tradução em termos de estratégia. Eu tive acesso a muitas ferramentas linguísticas e digitais que os outros tradutores não tiveram, porque as outras saíram nos anos 50 e 90, respectivamente, mas acho que essas são sutilezas. Tem algumas coisas que diferenciam a tradução já a partir da embalagem, dá para dizer que é a primeira tradução anotada em língua inglesa. A Penguin é a primeira editora a apostar que isso seria necessário e interessante para o leitor em língua inglesa. Tem também o fato de sair não pela Penguin, mas pela Penguin Classics. É um selo que tem história, que tem um peso, é como se estivesse colocando Machado naquela prateleira da literatura universal. Se a Penguin Classics publica alguma coisa, você pressupõe que deveria conhecer. Eu poderia entrar em mais detalhes, em minúcias que diferenciam a minha tradução das outras, mas acho que é mais para especialistas.
Agência Brasil - A tradução de Memórias Póstumas chegou em um momento bem “peculiar”. Os Estados Unidos estavam, e estão, passando por uma pandemia e, ao mesmo tempo, uma série de protestos raciais em função da morte de George Floyd. Para você, esses dois fatores, mais especificamente os protestos, podem ter influenciado de alguma maneira no sucesso desta edição de Memórias Póstumas?
Flora - Podem, sim. Na verdade quando eu fui pensando no lançamento, temi que as manifestações ofuscassem completamente o evento, porque, o que ase sente muito nestes tempos é a urgência do momento. Uma semana particularmente conturbada, as manifestações pela morte do George Floyd tinham acabado de completar uma semana, estavam pegando fogo pelos Estados Unidos, e as redes sociais eram muito voltadas para organizar tais manifestações. Tinha muita coisa mudando o tempo todo e, nesse contexto, temi que um romance com quase um século e meio de vida ficasse escanteado, não chegasse agarrando as pessoas pela gola. Foi por isso também que foi surpreendente [a edição de Memórias Póstumas vender tanto], alguma coisa nessa mistura de fatores fez com que tivesse o efeito contrário. Isso é que eu não sei explicar, eu teria apostado em um efeito contrário.