Otavio Guizzo Duncan Couto | 05 de setembro de 2017 - 10h32

Prescrição: Um Brinde à Impunidade

Por Otavio Guizzo Duncan Couto

ARTIGO
Otavio Guizzo Duncan Couto - Divulgação

Banestado, Anões do Orçamento, Gafanhotos, Sanguessugas. O que todos esses escândalos compartilham em comum? Após anos de complexas investigações, as diversas autoridades envolvidas terminaram livres de eventuais condenações na justiça graças à prescrição penal. Recursos financeiros, tempo e esforços preciosos foram envidados em vão. Mais uma vez, venceram a ineficiência e o anacronismo de um sistema criminal, cuja principal face ainda é a impunidade. Isso por si só, já evidencia um cenário preocupante, que pede um olhar urgente, não só por parte dos operadores do direito, mas também de todos os agentes sociais que não se conformam mais com o atual estado de coisas.

Em linhas gerais, poder-se-ia conceituar a prescrição como a perda da pretensão de punir por parte do Estado em razão da passagem de tempo. Ela é uma causa de extinção da punibilidade prevista, expressamente pelo artigo 107, IV do Código Penal e pode ser desdobrada em duas espécies, as quais têm no trânsito em julgado da sentença condenatória, o seu marco divisor. Configurar-se-à, nesse sentido, a prescrição da pretensão punitiva (PPP), quando a extinção da punibilidade se der antes do referido trânsito em julgado. A prescrição da pretensão executória (PPE), por sua vez, dar-se-à, se esse instituto for invocado depois de tal trânsito. Na primeira situação, o Estado não poderá sequer, processar o agente criminoso (jus persequendi in juditio). Na segunda, o que não resiste mais é a possibilidade de aplicação da pena já individualizada, a sanção, propriamente dita (jus executionis).

Por trás de toda essa ideia de prescrição, cumpre ressaltar que, existe certa lógica e racionalidade. Ela objetivaria, de maneira simples e direta, a garantia da segurança jurídica, valor fundamental em um Estado de Direito. Não se reputaria afinal, sensato que o Estado desse azo à insegurança nas relações sociais, semeando a incerteza e a instabilidade, representadas na eterna possibilidade da punição de práticas delitivas ocorridas há tempos, significativamente remotos. Daí, os ensinamentos magistrais de Montesquieu no sentido de que a prescrição teria por fim precípuo a “pacificação dos espíritos” e o “serenamento dos ânimos”.

O instituto da prescrição carrega ainda consigo, em última análise, um dado caráter didático. Esse se consubstancia na admoestação severa por parte do Estado dirigida ao titular da ação penal, quando este é fulminado diretamente em sua pretensão, que não mais subsistirá. Se de um lado então, há uma maximização da importância de uma atuação diligente pelos membros do parquet. De outro, estar-se- à a condenar uma postura de negligência e descaso para com a tutela das liberdades públicas e individuais, que é afinal a razão de ser de todo e qualquer processo penal.

Contudo, não se pode mascarar o que vem ocorrendo no Brasil, em que o instituto ora analisado, converteu-se em instrumento de aplicação parcimoniosa. Mesmo nos casos em que o Ministério Público, o titular da ação penal pública, nos termos do artigo 129, I da Constituição Federal, acompanhe de maneira escorreita o processo, esse ainda sim pode acabar sendo extinto, mais dia menos dia, em razão da prescrição. Isso se dá pelas mais diversas causas, seja a demanda judicial excessiva ou até mesmo, a carência de juízes nas comarcas Brasil afora.

Além disso, não se pode olvidar também dos incontáveis recursos com que a defesa conta e se utiliza, muita das vezes com intenções, manifestadamente protelatórias, o que levou o ex-ministro do STF, Cezar Peluso a afirmar que: "O Brasil é o único país do mundo que tem na verdade quatro instâncias recursais". O fato é que em um cenário da mais completa subversão dos valores e do bom senso, pune-se na prática, em um delirante salto imputativo o Ministério Público, a sociedade e as próprias vítimas por falhas processuais que sequer, foram por elas responsáveis de alguma forma. As vítimas passam então a perder as esperanças no poder judiciário e na efetividade do sistema jurisdicional, questionando assim a sua legitimidade.

Uma das 10 medidas contra a corrupção propostas no início do corrente ano pelo Ministério Público Federal dispunha que, só deveria haver o cancelamento dos processos, se o MP não agisse ou não o fizesse adequadamente. Dessa forma, quando o órgão acusatório percebesse que o caso está demorando no tribunal, poderia protocolar uma petição rogando seu julgamento prioritário. Diante da demonstração inequívoca da ausência de inércia do poder público, a contagem do prazo prescricional então recomeçaria.

O caso do Banestado, por exemplo, retrata bem toda essa irracionalidade do sistema. Ele costuma ser apontado como o embrião do Petrolão e ficou conhecido por ter apurado uma vasta rede de atuação de doleiros, que usavam nomes de empresas sediadas em paraísos fiscais para a prática de crimes como lavagem de dinheiro, evasão de divisas e inclusive, tráfico de drogas. Pela primeira vez, o Ministério Público Federal criou uma força tarefa dedicada a uma investigação criminal e a colaboração premiada foi experimentada como efetivo meio de prova. Passados mais de doze anos, poder-se-ia dizer, em síntese apertada que, os que foram mesmo punidos restringiram-se às figuras dos colaboradores. A maioria, afinal, beneficiou-se da prescrição. Segundo levantamentos da justiça dos 684 acusados, apenas sete foram presos após o fim do processo e mais outros seis foram detidos, recentemente (1,9%). Daí a afirmação do Juiz Sergio Moro, em um dos processos do referido caso: “Há algo de errado em um sistema criminal que leva tanto tempo para produzir uma condenação definitiva. Quase vinte anos desde os crimes. Quase doze anos desde a sentença de primeiro grau”.

Outra crítica construtiva que pode ser formulada se dá quanto à redução pela metade dos prazos prescricionais, nos casos em que o réu for menor de 21, quando do tempo do crime ou maior de 70 anos, no momento da prolação da sentença, nos termos do artigo 115 do Código Penal. Impossível não se recordar, nesse sentido, do exemplo mais clássico e recente vindo, justamente da figura do ex-deputado federal, Paulo Maluf. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entidade da administração pública federal, por seu turno, aponta uma trajetória exponencial de aumento na expectativa de vida média do brasileiro. Hoje, ela é de aproximadamente 75 anos. Isso só revela então que, essa previsão normativa não mais encontra, nem mesmo eco no tecido social. Serve hoje, na verdade, mais como um reforço de um sistema que se transformou em verdadeira máquina de produção da impunidade.

Diante do exposto, não restam mais dúvidas, portanto de que o sistema penal brasileiro como um todo e o prescricional precisam passar por profundas e urgentes transformações. Como bem disse o Procurador da República e Coordenador da Força Tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, “Nós vivemos no Brasil uma cultura jurídica parcial que causa injustiças sistêmicas, sobrevalorizando os direitos dos réus e menosprezando os direitos da sociedade”. Ainda que pequenas mudanças pareçam ser insignificantes, é partir delas que se pode começar uma (re)construção.

Como na premonição do sergipano, Tobias Barreto, lapidada na voz combativa do Procurador de Justiça, Edilson Mougenot Bonfim, na abertura do evento jurídico da década, o I Congresso Brasileiro da Escola de Altos Estudos Criminais: “O Direito há de ser um verdadeiro produto cultural dos tempos”. Esse tempo finalmente parece ter chegado.

Otavio Guizzo Duncan Couto é Estudante de Direito da UFRJ e Estagiário do MPF