31 de dezembro de 1969 - 21h00

O Judiciário e o Legislativo

Artigo

 Fernando Chemin Cury (*)

Vigora no sistema constitucional brasileiro o princípio da tripartição dos poderes. Desde a Grecia antiga já se falava nessa separação, mas foi com a obra de Montesquiew, em 1.748 (Do Espírito das Leis), que então surgiu essa visão da repartição dos poderes como forma de evitar o abuso. Montesquiew falava, então, que o poder tende a corromper quem o detém, caso não encontre limites. A frase de Montesquiew, obviamente, vale para todos os Poderes, inclusive para o Judiciário que, por força do sistema constitucional vigente, tem o poder de dizer “quem está certo ou errado”. 

Mas além dessa função de evitar os abusos, a teoria da tripartição dos poderes também garante que os mesmos possam desempenhar sua função – logicamente adstritos à lei -, de forma livre e autônoma, caso contrário a máquina estatal seria ainda mais burocrática e ineficiente.
 
Isso significa que algumas questões relativas a um determinado Poder, muito embora estejam sujeitas à apreciação do Poder Judiciário (art. 5, XXXV, CF), não podem ser questionadas por esse Poder naquilo que se refere ao mérito da questão. É exatamente o que acontece quando o Poder Legislativo resolve julgar o Chefe do Poder Executivo em razão de alguma infração político-administrativa, a exemplo do que vem ocorrendo em nossa querida Campo Grande.
 
Sem ingressar no mérito do processo, o Poder Judiciário deve entender que sua função não é “politizar a Justiça”, mas assegurar que o processo tramite com as garantias constitucionais inerentes ao sistema, ou seja, que seja assegurado o devido processo legal, bem como os postulados que dele derivam, a exemplo da ampla defesa, do contraditório, do princípio do juiz natural, etc.
 
E por falar em princípio do juiz natural, de forma bem simples, ele significa que às partes não é autorizado escolher o juiz que irá analisar e julgar sua causa. A competência do juiz é definida em lei e o processo, quando protocolado, respeitadas as regras legais, deve ser distribuido de forma aleatória e por sorteio, sem escolha desse ou daquele magistrado. Isso evita, por óbvio, os desmandos, o abuso e o tão repugnante tráfico de influência que, aqui e acolá, insiste em rodear as Cortes de Justiça em todo o País.
 
É por isso também que o TJ/MS e o próprio Conselho Nacional de Justiça editaram Provimentos regulamentando o que pode e o que não pode ser analisado no plantão judiciário. O objetivo, ao restringir as matérias que devem ser apreciadas, também é evitar que partes e advogados façam manobras para tentar que suas causas – já apreciadas durante o ano – sejam novamente analisadas por juízes que já estão previamente designados para o plantão.
 
E nesse sentido, o art. 5. do Provimento n. 302/2013 do TJ/MS é claro ao dispor que: “No plantão judiciário, não será admitida a reiteração de pedidos já apreciados pelo Tribunal, nem pedidos de reconsideração ou reexame das decisões proferidas durante o recesso forense”.
 
A partir daí, não há como negar que o episódio ocorrido na última semana em nossa Capital, denominado pela imprensa de “guerra de liminares” - não sem motivo – deixa qualquer cidadão perplexo.
 
Sem ingressar no mérito do processo, é difícil aceitar que o caso, depois de ser julgado em primeira instância por juiz competente e não “previamente designado”, seja reapreciado em sistema de plantão.
 
A sentença proferida no mandado de segurança impetrado pelo Ilmo. Sr. Prefeito Municipal está sujeita a recurso sem efeito suspensivo, por força do que dispõe a Lei n. 12.016/2009. E concluiu ela que não havia nenhuma irregularidade processual que legitimasse a interferência do Poder Judiciário no processo de cassação instaurado pelo Poder Legislativo.
 
Isso significa que os atos da tão falada comissão processante, durante as atividades normais do Poder Judiciário, recebeu, de forma imparcial, a chancela da legalidade pelo magistrado competente para o caso. Tentou-se, naturalmente, a suspensão dos efeitos dessa decisão, todavia, mais uma vez o Poder Judiciário entendeu que não havia motivo para essa suspensão e, de forma acertada, preservou a autonomia do Poder Legislativo naquilo que se refere ao julgamento de infrações político-administrativas supostamente praticadas pelo Chefe do Poder Executivo.
 
É exatamente por isso que, sob o ponto de vista legal e Constitucional, a matéria não poderia ser novamente apreciada em sistema de plantão, onde os juízes já são previamente estabelecidos por escala previa publicada pelo Tribunal de Justiça.
O papel do Poder Judiciário é garantir a legalidade do processo e os direitos fundamentais de todo cidadão. Como guardião desses valores, obviamente não pode agir em sentido contrário, sob pena de não poder exigir dos demais o respeito às leis e às demais regras que regulam nossas vidas.
 
Foi exatamente por isso que a Exa. Desembargadora Tânia Garcia de Freitas Borges, em regime de plantão, desde o início – e ao nosso ver, de forma acertada –, negou o pedido de reapreciação feito pelos ilustres advogados do Ilmo. Sr. Prefeito Municipal de Campo Grande. Não há como aceitar que a matéria, depois de ser analisada, de forma completa, pelos juízes competentes para a causa, seja novamente apreciada em sistema de plantão, principalmente quando a causa já tinha sido analisada e negada também nesse período. Essa prática acaba por incentivar o abuso e, infelizmente, coloca o Poder Judiciário – formado por juízes honestos e imparciais – em um cenário de dúvida perante a população.
Espera-se, portanto, que esse quadro de instabilidade jurídica denominado “guerra de liminares” seja prontamente reformado pelas autoridades competentes, restaurando, com isso, a autonomia dos Poderes e, principalmente, a credibilidade do Poder Judiciário.  
 
(*) O autor é juiz de direito e professor de Direito Constitucional