
Conforme lição cunhada pela saudosa Professora Ada Pellegrini Grinover, titular da Universidade de São Paulo, “... a Constituição Federal não mais limita o contraditório e a ampla defesa aos processos administrativos (punitivos) em que haja acusados, mas estende as garantias a todos os processos administrativos, punitivos e não punitivos, ainda que neles não haja acusados, mas simplesmente litigantes. Litigantes existem sempre que, num procedimento qualquer, surja um conflito de interesses. Não é preciso que o conflito seja qualificado pela pretensão resistida, pois neste caso surgirão a lide e o processo jurisdicional. Basta que os partícipes do processo administrativo se anteponham face a face, numa posição contraposta”. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Do direito de defesa em inquérito administrativo, págs. 84/85).

Com efeito, sendo o princípio legalidade norteador de toda a atividade administrativa (art. 37, caput, da CF/1988), é imprescindível para a validade do procedimento administrativo, qualquer que seja sua finalidade, a observância racional de um procedimento regular, visto que “Sem observância de um mínimo de normas formais, carece de legitimidade o ato de poder”. (LUCON, Paulo Henrique dos Santos, RJ nº 253, nov. 98, pág. 05).
A despeito desses paradigmas legais e doutrinários, não raras vezes a Administração Pública, no exercício de suas atividades, tem inobservado esses princípios-garantias constitucionais e imposto aos contribuintes diversas sanções, sejam de cunho pecuniário ou obrigacional. Destacamos, nesse sentido, o procedimento instaurado com base nas disposições da Lei Complementar Municipal nº 59/03 e no Decreto Municipal nº 14.771/2021, onde o Fisco Municipal, após análise do diário, livro caixa, extratos bancários e de cartão de crédito e débito, notas fiscais eletrônicas de entrada e saída de mercadorias do contribuinte promove o lançamento de suposta diferença de recolhimento de ISSQN calculada com base na média apurada nos últimos 5 anos, acrescida de juros, multa e correção monetária, e ainda efetua o desenquadramento do contribuinte do Sistema de Recolhimento de Valores Fixos Mensais dos Tributos abrangidos pelo Simples Nacional (SIMEI) e passa a enquadrá-lo na condição de Microempresa/Empresa de Pequeno Porte, com os reflexos legais daí decorrentes.
Embora não se questione a constitucionalidade do procedimento administrativo fiscal instaurado pelo Município com base na Lei Complementar Municipal nº 59/03 e no Decreto Municipal nº 14.771/2021, já que o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), desde o ano de 2016, garantiu ao Fisco (Federal, Estadual e Municipal) o acesso a dados bancários dos contribuintes sem necessidade de autorização judicial, a imposição das sanções acima mencionadas (lançamento e posterior cobrança de suposta diferença de recolhimento de ISSQN e descredenciamento do contribuinte do Sistema de Recolhimento de Valores Fixos Mensais dos Tributos abrangidos pelo Simples Nacional - SIMEI) deve necessariamente ser precedida da instauração de um processo administrativo fiscal onde seja assegurado ao contribuinte o exercício de todas as garantias constitucionais, pena de tornar nula a sanção e todos os demais atos que a antecederam.
Vale destacar, que “a oportunidade de defesa assegurada ao interessado há de ser PRÉVIA À DECISÃO, não lhe suprindo a falta a admissibilidade de recurso (...)” (STF, MS nº 23.550, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 31.10.2001). Desse modo, antes de expirado o prazo para apresentação dos documentos descritos na Intimação Fiscal endereçada ao contribuinte ou de oportunizada a apresentação de impugnação da exigência fiscal ou contestação, se revela ilegítima a imposição, por parte do Fisco Municipal, de qualquer sanção ao administrado, pena de invalidação de todo o procedimento administrativo fiscal. A propósito, a própria Lei Complementar nº 02/92, que “Institui o Código Administrativo de Processo Fiscal de Campo Grande/MS e dá outras providências”, em seu artigo 40, assegura ao sujeito passivo “o direito de ampla defesa”.
Em recentíssimo Acórdão proferido pela 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, os membros da referida Câmara acolheram os argumentos de um contribuinte de Campo Grande que deve seus direitos violados pelo Fisco Municipal determinando a suspensão dos efeitos da Notificação de Lançamento encaminhada ao contribuinte e do respectivo Termo de Desenquadramento do SIMEI, assegurando-lhe o direito de, querendo, manter-se no Sistema de Recolhimento em Valores Fixos Mensais dos Tributos abrangidos pelo Simples Nacional (SIMEI) até o julgamento definitivo do mandado de segurança impetrado pela empresa.
Trata-se de grande vitória que reacende a chama de esperança pela observância de um procedimento administrativo fiscal onde seja assegurado ao contribuinte, no mínimo, o respeito as garantias constitucionais do contraditório da ampla defesa e do devido processo legal, vez que estando a atividade da Administração Pública, em todas as esferas, norteada pelo princípio da legalidade, “Qualquer ação estatal sem o correspondente calço legal, ou que exceda ao âmbito demarcado pela lei, é injurídica e expõe-se à anulação”. (GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo, Editora Saraiva, 4ª Edição Revista e Ampliada, pág. 06).
(*) Régis Santiago de Carvalho - Advogado, sócio das bancas Régis Carvalho Advogados Associados (www.regiscarvalho.adv.br – Campo Grande/MS), Carvalho & Padovani Sociedade de Advogados (www.carvalhoepadovani.adv.br – Tangará da Serra/MT) e Neme, Carvalho & Marques Advogados (Brasília/DF); Palestrante, Mestrando em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa (Portugal), pós-graduado em Direito Constitucional, Especialista em Direito Tributário, Professor em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito, Conselheiro Estadual da OAB/MS, Presidente da Academia de Direito Processual de Mato Grosso do Sul – ADP/MS, autor da obra “A Insujeição da Sentença Arbitral ao Precedente Judicial Previsto no Código de Processo Civil de 2015”, Editora Life e Co-autor das obras “Práticas Contemporâneas Trabalhistas e Previdenciárias” - Tema: Os Provimentos Judiciais Legalmente Vinculantes e seus Reflexos nas Lides Previdenciárias - Editora Quartier Latin – 2019; “O Procedimento de Cassação de Mandato de Prefeitos e Vereadores – Aspectos Atuais do Decreto-Lei nº 201/67 à luz da jurisprudência e do CPC/2015” - Life Editora – 2019 e “Os Efeitos Patrimoniais da União Estável na Terceira Idade e a (In)constitucionalidade da imposição legal do regime de separação obrigatória de bens previsto no Código Civil Brasileiro” Life Editora – 2022.
