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ARTIGO

Guia para caminhos difíceis ou patrulha do bom gosto?

Francisco Neto Pereira Pinto (*)

16 outubro 2025 - 09h45Por Francisco Neto Pereira Pinto
Francisco Neto Pereira Pinto
Francisco Neto Pereira Pinto - (Foto: Divulgação)

O ridículo provoca a vergonha de si mesmo - Em Poema em linha reta, de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, o eu lírico, que se apresenta como uma voz masculina, desenha a imagem de um homem envergonhado perante si mesmo, um ridículo, devido sua humanidade que, acredita ele, ser pequena, aquém, se comparada à dos seus irmãos — os outros, seus contemporâneos, elevados à posição de príncipes, semideuses. Considera-se porco, vil, sujo, e um dos predicativos que mais repete é: ridículo. Por quê? O próprio poema responde: porque todos esses outros são, para ele, um Ideal — um horizonte inalcançável, perante o qual se sente em dívida, um reles, mesquinho, absurdo, grotesco — ridículo.

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Ridicularizar alguém é torná-lo risível — ação que o leva a sentir vergonha perante os outros e, o que é pior, diante de si mesmo. Por acaso não seria essa uma estratégia empregada nos artigos de Walnice Nogueira Galvão, Aurora Fornoni Bernardini e, por último, Dirce Waltrick do Amarante, para desqualificar autores, textos e leitores que não alcançam o Ideal esperado por elas para a estatura de leitor e de literatura?

A não literatura e o leitor ingênuo - Em artigo publicado na Folha de São Paulo, a tradutora e professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Dirce Waltrick do Amarante, afirma que a proliferação de celebridades literárias aquece o mercado, mas enfraquece a literatura. Esse enfraquecimento se daria pela ação recíproca e consentida entre mercado editorial, autores e leitores, que transformam a arte em produto comercial. A expressão mais clara desse estado de coisas seriam os best-sellers. Para a crítica, a relação promíscua entre novos autores e o mercado editorial acabaria por ofuscar os valores estéticos que, até recentemente, balizavam o julgamento da crítica, cujos padrões de excelência vinham de, por exemplo, Virginia Woolf e Guimarães Rosa.

Fica evidente, pela afirmação contida no título do artigo, que Amarante não está apenas indagando sobre o futuro. Trata-se, na verdade, de uma afirmação sobre o presente. Esses novos autores, que chegam a se tornar celebridades literárias, como Elena Ferrante, são chamados, jocosa e ironicamente, de futuros Nobel de Literatura.

Os leitores desses best-sellers também não escapam ao desdém emprestado pela crítica literária que, recorrendo ao pensamento de Augusto Meyer, os qualifica como leitores ingênuos, por não se interessarem pelos livros enquanto obra de arte, valorizando, por exemplo, a impressão estética e o estilo. Esse tipo de leitor espelha no livro o seu próprio universo pessoal, e um exemplo disso seria a identificação que facilmente estabelece com o protagonista ou herói do romance.

Esse artigo de Amarante faz série com dois outros, também publicados pela Folha de São Paulo. O primeiro, de 30 de agosto de 2025, foi assinado pela crítica literária Aurora Fornoni Bernardini, professora aposentada da Universidade de São Paulo, no qual afirmou que os autores Elena Ferrante e Itamar Vieira Júnior não eram literatura. Nessa ocasião, Bernardini retomava um posicionamento de outra crítica literária, também professora da USP, Walnice Nogueira Galvão, em artigo de 24 de maio de 2025, para quem a literatura brasileira contemporânea privilegia mais o conteúdo do que a forma, o que implica uma produção que tende mais ao entretenimento do que à arte.

Percebe-se que, nessa tríade de artigos, as críticas jogam ladeira abaixo — da altura do Ideal de leitor e literatura que cultivam — tanto os autores, com seus textos, como também seus leitores que, segundo os julgamentos delas, não satisfazem os padrões de excelência nos quais acreditam. Não se trata de qualquer crítica, mas de juízos expressos por pessoas legitimadas por seus pares, que enunciam a partir de instituições e por meio de veículos consagrados, o que confere bastante peso às suas opiniões. Julgando a partir da catedral, como diria Ligia Chiappini Moraes Leite, em tom jocoso e irônico, tornam ridículos esses autores, com seus textos e seus leitores, que também formam uma tríade: autores — pretensos futuros Nobel de Literatura; textos — não literatura; e leitores — ingênuos.

Crítica deve orientar, não envergonhar - Leila Perrone-Moisés, em seu Altas literaturas, explica que criticar, do ponto de vista da crítica literária, significa julgar, formular um julgamento de valor a respeito de uma obra. Antonio Candido, por sua vez, em Notas de crítica literária: ouverture, afirma que a missão do crítico, ao explicar uma obra, um autor e, até mesmo, ao emitir opinião sobre a produção literária de um período, é orientar os seus contemporâneos, colocando seu juízo a serviço do horizonte do seu tempo e de suas necessidades. Para ele, a crítica literária se coloca como um instrumento de conhecimento e um guia de caminhos difíceis.

Enilda Maria de Souza, já no início deste século XXI, em seu texto O fim das ilusões, falava de uma divisão da intelectualidade pós-moderna em dois grupos distintos: de um lado, aqueles que buscam compreender os complexos acontecimentos da contemporaneidade e os aceitam como queda de parâmetros; de outro, os que, guiados por valores perdidos do passado, se voltam para a prática selvagem desses parâmetros, como fazem, por exemplo, os juízos formulados por Walnice, Bernardini e Amarante.

Como se pode observar da leitura de seus textos, não há esforços sinceros envidados no sentido de alargar o pensamento do leitor, de guiá-lo pelos caminhos difíceis da produção literária contemporânea em sua relação com o espírito da época. Não há exercício de juízo reflexivo, como diria Immanuel Kant, de modo que o leitor possa acompanhar as justificativas para os julgamentos, podendo concordar ou discordar de forma esclarecida. Corre-se o risco de cair em um exercício autoritário que, em vez de conduzir o leitor a um conhecimento ampliado, resvala para um expediente de ridicularização de autores, textos e leitores que não se alinham a esses valores que, longe de serem universais, identificam apenas o bom gosto de uma certa classe média alta, como dizia Eneida de Souza, logo de um grupo bem seleto – um clube de elite literária.

Nunca é demais lembrar as sábias palavras de Antonio Candido, no mesmo texto, de que não basta que o leitor se sinta diante de um(a) crítico(a) de boa compreensão — é preciso que ele sinta o homem, a mulher, de boa fé. Que tenhamos boa fé, e exerçamos nosso conhecimento para alargar o pensamento e guiar, e não para ridicularizar, envergonhar, os não príncipes, os não semideuses, para retomar o Poema em linha reta.

(*) Francisco Neto Pereira Pinto é psicanalista, professor e escritor. Doutor em Letras. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da Universidade Federal do Norte do Tocantins. Autor de À beira do Araguaia.

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