
Resumo

O presente artigo discute a interpretação do artigo 55 da Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis), que tradicionalmente não impõe ao recorrido vencido em grau recursal o ônus da sucumbência em favor do recorrente vencedor. Argumenta-se que tal interpretação literal viola princípios constitucionais como a isonomia, o devido processo legal e o amplo acesso à justiça, além de desvirtuar os propósitos de celeridade e economicidade do microssistema dos Juizados.
Propõe-se uma interpretação extensiva do dispositivo, alinhada à doutrina majoritária e a recentes precedentes jurisprudenciais, que condene o vencido em segundo grau, seja ele recorrente ou recorrido, ao pagamento de custas e honorários sucumbenciais.
Introdução
O microssistema dos Juizados Especiais Cíveis, idealizado pela Lei nº 9.099/95, tem como pilares a celeridade e a economicidade processual, visando facilitar o acesso à justiça para causas de menor complexidade e valor. Contudo, a aplicação do artigo 55 da referida lei, que trata da sucumbência recursal, tem gerado um paradoxo: em certas situações, o recorrente que obtém êxito em seu recurso, corrigindo uma injustiça de primeiro grau, acaba arcando com os custos processuais, o que se traduz em uma vitória pírrica.
Este artigo, embasado em divergência apresentada em voto como membro de Turma Recursal, propõe uma reflexão crítica sobre a interpretação restritiva do artigo 55 da Lei nº 9.099/95. Defende-se a imperatividade de que o recorrido vencido em sede recursal seja condenado ao pagamento de custas e honorários sucumbenciais, em observância aos princípios constitucionais e à finalidade original da norma.
1. A Interpretação Tradicional do Artigo 55 da Lei nº 9.099/95 e Seus Desafios
O artigo 55 da Lei nº 9.099/95 estabelece que "Em segundo grau, o recorrente, vencido, pagará as custas e honorários de advogado".
A interpretação literal desse dispositivo tem levado à conclusão de que apenas o recorrente que perde o recurso deve ser condenado aos ônus da sucumbência, isentando o recorrido que perde em segundo grau, mesmo que tenha dado causa à instauração do processo ou ao prolongamento da lide.
No entanto, essa leitura fria da lei ignora o contexto histórico de sua criação e os valores que a Constituição Federal de 1988 consagrou. O artigo 55 é, em essência, uma reprodução de texto legal anterior à Constituição Cidadã (artigo 53 da Lei nº 7.244/84). Naquele contexto, o desestímulo ao recurso era um fator primordial para a celeridade. Contudo, após 1988, a celeridade não pode ser alcançada à custa da desigualdade de tratamento entre as partes, submetidas a condições idênticas.
A interpretação restritiva incorre em manifesta inconstitucionalidade material, por afrontar princípios basilares do Estado Democrático de Direito. A "literalidade da lei" aqui praticada não corresponde à sua mens legis, mas sim a uma interpretação restritiva que conflita com os princípios norteadores dos Juizados Especiais, como a economia processual e o amplo acesso à justiça.
2. A Quebra da Isonomia e o Obstáculo ao Acesso à Justiça
A ausência de condenação do recorrido vencido gera uma evidente desigualdade de tratamento. Se o recorrente, ao buscar a correção de uma sentença injusta, é obrigado a adiantar as custas do preparo recursal (art. 54, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95) e contratar um advogado, não é justo que, mesmo sagrando-se vencedor, arque com o custo econômico do processo. Em verdade, essa situação impõe uma condenação àquele que venceu a ação, criando uma "sucumbência neutra" que não existe.
Para uma parcela significativa da população, especialmente as classes B e C (correspondendo a 45,8% da população brasileira, segundo pesquisa da Tendência Consultoria[1]), a impossibilidade de reembolso das despesas processuais em caso de vitória no recurso pode significar a renúncia indireta à justiça. Muitas vezes, o custo da fase recursal é maior que o próprio proveito econômico da ação, desestimulando a busca pela reparação de direitos violados.
Logo, a interpretação restritiva, ao isentar o causador da lesão, concede-lhe privilégio, pune a parte lesionada e ainda onera o erário e o próprio jurisdicionado, que, mesmo vencedor, arca com as despesas sem reembolso. Tal cenário fomenta o comportamento descompromissado de fornecedores em demandas de consumo, potencializando a judicialização em massa.
3. A Boa Hermenêutica: Análise Sistemática e Teleológica
A boa hermenêutica exige a aplicação da análise sistemática e teleológica do artigo 55, sob pena de institucionalizar a injustiça em nome de uma suposta "aplicação fria da lei". A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), em seus artigos 4º e 5º, orienta o juiz a decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, e a atender aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum. O artigo 6º da Lei nº 9.099/95 reforça essa diretriz, ao estabelecer que "o Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime".
A intenção do legislador, apesar de a redação não ser perfeita, era obstar recursos meramente protelatórios, e não todos os recursos. A sucumbência deve ser ônus daquele que deu causa à ação e foi vencido, não havendo exclusão expressa da imposição das condenações ao recorrido. A interpretação gramatical do artigo 55 que leva à isenção do recorrido vencido é inconstitucional, pois contraria frontalmente os valores da Constituição vigente e desrespeita a função essencial da advocacia.
4. O Posicionamento da Doutrina e a Ascensão da Jurisprudência
Conquanto a jurisprudência dominante ainda penda para a aplicação restritiva do artigo 55, a doutrina, de forma maciça, defende a interpretação extensiva do dispositivo. Autores renomados como Alexandre Chini[2], Fernando da Costa Tourinho Neto, Joel Dias Figueira Júnior[3], Alexandre Freitas Câmara[4], e os Ministros Luiz Fux[5] e Luis Felipe Salomão[6], em seus comentários à Lei nº 9.099/95 e em decisões, preconizam que o vencido em segundo grau, seja recorrente ou recorrido, deve arcar com os ônus da sucumbência.
Essa linha de raciocínio fundamenta-se no princípio da causalidade, pelo qual o ônus financeiro do processo recai sobre aquele que deu causa à sua instauração ou prolongamento. Se o recorrido, ao persistir em sua tese e ser vencido em grau recursal, deu causa ao prolongamento do processo, é justo que seja condenado às despesas.
Além da doutrina, a jurisprudência no sentido defendido pela interpretação extensiva vem ganhando ascensão. Decisões como a do TJ-RSED nº 71007601792 RS e do TJMS nº 0802579-96.2024.8.12.0110/50000-Campo Grande, bem como o Recurso Inominado nº 0496699-58.2015.8.19.0001 do TJSP, demonstram um movimento crescente de reconhecimento da necessidade de condenação do recorrido vencido, inclusive no que tange ao reembolso das custas adiantadas pelo recorrente vencedor.
5. Projeto de Lei e a Correção de Uma Omissão Redacional
É relevante destacar que tramita o Projeto de Lei nº 3.191/2019, em estágio avançado no Congresso Nacional, que busca alterar a redação do artigo 55 da Lei nº 9.099/95 para prever expressamente a responsabilização da parte vencida em segundo grau (recorrente ou recorrido) pelo pagamento de custas e honorários sucumbenciais. Tal proposição legislativa, longe de ser uma inovação, apenas confirma a tese aqui defendida, no sentido de que a interpretação extensiva do dispositivo resgata sua finalidade originária e compatibiliza a norma infraconstitucional com os princípios da isonomia, do devido processo legal e do amplo acesso à justiça. O PL visa corrigir uma omissão redacional do legislador ordinário, cuja lacuna deu margem a uma interpretação restritiva em descompasso com a Constituição Federal.
Conclusão
A justiça dos Juizados Especiais, pensada para o povo, deve garantir que o ato de recorrer para corrigir uma injustiça não se torne um privilégio apenas para aqueles que podem arcar com os prejuízos. A interpretação restritiva do artigo 55 da Lei nº 9.099/95, ao isentar o recorrido vencido do ônus da sucumbência, fere a isonomia, obstrui o acesso à justiça e onera indevidamente o vencedor da lide e o erário.
É imperioso que se adote uma interpretação sistemática e teleológica do dispositivo, alinhada à melhor doutrina e aos princípios constitucionais, que imponha a condenação em custas e honorários ao vencido em segundo grau, seja ele recorrente ou recorrido. Somente assim se garantirá a plena efetividade dos Juizados Especiais como instrumento de acesso à justiça e se evitará o paradoxo de "vencer e perder" para o jurisdicionado. A aprovação de iniciativas legislativas como o PL nº 3.191/2019 reforça a necessidade e a justeza dessa reinterpretação.
Se a justiça dos Juizados é a justiça do povo, então é imperioso garantir que recorrer para corrigir uma injustiça não seja privilégio apenas dos que podem perder.
*Ricardo Gomes Façanha, natural de Fátima do Sul-MS. Bacharel em direito pela Socigran e pós-graduando em Direito Digital, Proteção de Dados e Inteligência Artificial pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) . Ingressou na Magistratura Estadual através do XVIII Concurso de Provas e Títulos, em junho de 1999. É titular da 2ª Vara Bancária (antiga 19ª Vara Cível Digital) e designado membro titular da 1ª Turma Recursal Mista dos Juizados Especiais no biênio 2025/2025.
