
Há épocas em que a sociedade parece falar apenas em ruídos. As tensões se sobrepõem, as polarizações se multiplicam, o julgamento toma o lugar do diálogo e tudo se converte em disputa, ressentimento e hostilidade. Se hoje assistimos em tempo real ao acirramento das relações, desde conflitos entre portugueses e brasileiros em Portugal até agressões verbais dentro de parlamentos europeus, passando por fraturas econômicas, disputas religiosas e animosidades políticas no mundo inteiro, é legítimo perguntar se estamos diante de um sintoma de desajuste profundo ou apenas de uma amplificação tecnológica da velha condição humana.
Apesar da sensação de novidade, a percepção de uma espécie de intolerância generalizada não é exclusiva da contemporaneidade. No final do século XIX e início do século XX já existia um mal-estar semelhante, ainda que expresso em outras palavras. Émile Durkheim descreveu como anomia a desregulação moral que aparece quando normas deixam de oferecer coesão e orientação. Essa perda de referências produz insegurança e conflitos que se manifestam na vida coletiva, como ele observa em O Suicídio, ao analisar a fratura entre o ritmo acelerado da modernização e a capacidade das instituições de absorver o impacto das mudanças.
Ainda antes da Primeira Guerra Mundial, Gustave Le Bon percebeu algo muito próximo do que hoje se reconhece como radicalização. Em A Psicologia das Multidões ele descreveu como emoções extremas, contágio e sugestão se alastram entre grandes grupos, tornando opiniões impermeáveis ao debate e transformando diferenças em antagonismos absolutos. As crenças que tomam conta das massas, para Le Bon, podem adquirir o mesmo ardor intolerante das convicções religiosas. A multidão não debate, reage, e ao reagir absolutiza.
Outros pensadores registraram o mesmo clima de tensão crescente. Ferdinand Tönnies e Georg Simmel analisaram a desagregação das formas tradicionais de comunidade na transição para a vida urbana. W. E. B. Du Bois, nos Estados Unidos, nomeou o problema da linha de cor como o eixo estruturante de conflitos raciais que marcariam profundamente todo o século. Em várias partes da Europa, intelectuais alertavam para o avanço do nacionalismo e do racismo científico, antecipando os desdobramentos trágicos que viriam com as guerras.
No campo antropológico, ainda antes de 1914, Franz Boas inaugurou uma crítica decisiva ao determinismo biológico que alimentava políticas de exclusão. Em The Mind of Primitive Man, publicado em 1911, Boas argumentou que diferenças culturais não são hierarquias raciais e que qualquer política fundada na ideia de superioridade biológica constitui um grave erro científico e moral. Essa crítica, fundamental para a antropologia moderna, já antecipava o uso político da intolerância que dominaria o período entre as guerras.
Se o mal-estar já era perceptível no início do século, o período entre a Primeira e a Segunda Guerra tornou ainda mais visível a fragilidade das amarrações civis. José Ortega y Gasset, ao publicar A Rebelião das Massas em 1930, descreveu um fenômeno que ecoa fortemente no presente. O homem comum sente que tem o direito de impor suas opiniões a tudo, as nuanças desaparecem, o espaço público torna-se um conjunto de disputas irritadiças e a autoridade das minorias criativas e das instituições culturais se dissolve. A agressividade cotidiana aparece como forma de compensar inseguranças profundas.
No mesmo período, Freud, em O Mal-estar na Civilização, observou que existe uma pulsão agressiva permanente que a vida social tenta conter sem jamais conseguir eliminá-la. A civilização é, para ele, um delicado exercício de contenção e renúncia. O que ameaça a ordem não é a exceção, mas justamente a normalidade: a agressividade humana, sempre disponível, pode ser projetada sobre qualquer grupo considerado estranho ao ideal dominante.
Norbert Elias, por sua vez, em O Processo Civilizador, publicado em 1939, mostra como o controle da violência e das emoções nas sociedades europeias foi um processo lento e frágil. Sua obra revela que a civilização não é um estado consolidado, mas um equilíbrio instável que pode regredir diante de impulsos nacionalistas, de crises econômicas ou do colapso de instituições. Estudar a história das emoções e da violência ajuda a compreender que avanços civilizatórios não são lineares e que a regressão é sempre uma possibilidade.
Quando olhamos o presente sob a luz desses autores, percebemos que a sensação atual de intolerância global emerge de fenômenos reais e simultaneamente amplificados por tecnologia. Vivemos em um mundo em que tudo é visível em tempo real. Conflitos cirunscritos a pequenos espaços produzem a impressão de que o planeta inteiro está tomado por hostilidades simultâneas. A velocidade das informações intensifica a percepção de caos. No passado, uma crise demorava dias ou semanas para circular. Hoje, ela se espalha em minutos.
Isso não significa que o mal-estar seja ilusão. Ele é perceptível porque se apoia em feridas estruturais profundas. As tensões contemporâneas são sintomas de desigualdades crescentes, de inseguranças econômicas, de traumas históricos, de disputas identitárias e de conflitos religiosos. São heranças não resolvidas de sistemas regimentados pela raça, pela classe e pelas fronteiras nacionais. São também manifestações de medo diante de transformações rápidas demais, que deixam milhões de pessoas sem estabilidade material ou simbólica.
Diante de tudo isso, a pergunta inevitável é se estamos diante de um prenúncio de desajuste generalizado. A resposta talvez esteja na distinção entre febre e doença. A febre alerta. O termômetro não faz o diagnóstico sozinho. Hoje vemos sintomas que apontam para fragilidades reais, mas também vemos a presença de fatores de proteção e amortecedores sociais que evitam que o tecido se rompa por completo.
Entre esses amortecedores estão instituições que ainda funcionam, mesmo quando parecem desgastadas. São instâncias democráticas, judiciários que mantêm algum grau de estabilidade, eleições que seguem ocorrendo, redes de proteção social, acordos multilaterais e espaços culturais que continuam produzindo sentido. Há também redes sociais menos visíveis, famílias, comunidades religiosas, movimentos sociais, associações culturais e espaços educativos que operam silenciosamente na preservação de vínculos e na manutenção da confiança básica entre as pessoas.
Outro amortecedor fundamental é a capacidade humana de reformular narrativas. Isso inclui educação, arte, ciência, religião e cultura em sentido amplo. São nesses lugares que a sociedade repensa seus próprios mitos e reelabora suas contradições. São esses espaços que oferecem ferramentas para reinterpretar diferenças, reconstruir pactos, revisar identidades e criar novas linguagens de convivência. Uma sociedade que ainda é capaz de narrar a si mesma continua, de alguma forma, respirando.
Se o quadro é grave, ele não é irremediável. O que hoje chamamos de intolerância generalizada é, ao mesmo tempo, sintoma de feridas profundas de natureza econômica, histórica, racial, religiosa e cultural, e também uma oportunidade perigosa, mas real, de repactuar regras, valores e normas de convivência. A crise, em si, não garante a destruição. Ela apenas revela aquilo que sempre esteve presente, mas que agora emerge de forma visível.
A história sugere que momentos de tensão podem produzir tanto rupturas violentas quanto renascimentos inesperados. A diferença está na forma como lidamos com a febre. Se ela é ignorada, pode evoluir para algo irreversível. Se ela é reconhecida como sinal de alerta, pode abrir caminho para uma reorganização profunda, capaz de recuperar o que foi perdido e reinventar o que ainda não existe.
No fim, apesar de tudo, há um sopro de esperança. A civilização não é apenas um patrimônio de controle, mas também um patrimônio de imaginação. Podemos reescrever narrativas, fortalecer vínculos, revitalizar instituições e criar espaços de convivência mais humanos. A febre nos assusta, mas também nos desperta. Ela nos lembra que ainda é possível escolher entre a violência e a reconstrução, entre a barbárie e o cuidado, entre a ruptura e a repactuação. E essa possibilidade, frágil e luminosa, talvez seja o que mantém viva a esperança de que ainda podemos reconstruir um mundo mais justo, mais sensível e mais capaz de convivência.
(*) Pedro é presidente da Fundação Memorial da América Latina. Pós-doutor em Antropologia Social; agraciado pelo Senado Federal com a Comenda Câmara Cascudo por sua trajetória na defesa do patrimônio cultural brasileiro.

