
Dentro das pistas, um piloto único que conquistou três mundiais de Fórmula 1 e tantos outros títulos, dezenas de vitórias, poles positions. Fora dela, uma pessoa de família, próximo das pessoas, atencioso, apaixonado e obstinado a melhorar todos os dias. O último 1 de maio marcou os 28 anos de sua morte. Dos treinos de kart a última curva no Grande Prêmio de San Marino, no Autódromo Enzo e Dino Ferrari, em Ímola, Senna se mostrou especial. Abençoado por um talento inenarrável e uma alma que "chegou a ver Deus".

Tudo isso é contado pelo último assessor de imprensa do piloto brasileiro, Charles Marzanasco. O paulistano conheceu Ayrton muito tempo antes dele colocar seu capacete amarelo, fechar a viseira e escrever, pelos traçados das pistas, histórias que levavam todo um país a levantar nos domingos - desde as madrugadas até as tardes. Nenhum outro até o momento conseguiu gerar tanto apreço e torcida do Brasil em uma prática que é individual. Com Senna, a Fórmula 1 foi coletiva. Nas retas, aceleravam com ele, nas curvas freavam. Na chuva, confiança em Ayrton, Ayrton, Ayrton Senna do Brasil.
Charles, hoje com 67 anos, antes mesmo de trabalhar com o ídolo nacional o conhecia por alguns materiais produzidos anteriormente. O jornalista formado na Casper Líbero trabalhou na Folha de São Paulo, Revista 4 Rodas, Revista Autoesporte, entre outras e também foi piloto. Ou seja, estando próximo a Ayrton e com toda essa experiência, ele nos relatou algumas das grandes histórias vividas pelos dois.
Os dois se conheceram quando Senna tinha de 13 para 14 anos. Maurizio Sala, ex-piloto brasileiro, recebia para festas em reuniões muitos kartistas da época em sua casa. Senna era um deles e Charles estava no meio. "Eu conheci o Senna quando ele tinha 13 para 14 anos e ele era um dos melhores kartistas."
A relação dos dois foi se estreitando com o passar dos anos. Em 1980, Senna estava com cerca de 20 anos e partir para a carreira com carros. O pai do piloto Milton da Silva não queria a sequência de Senna no mundo das corridas. Para ele, o jovem tinha de ficar no escritório e cuidar dos negócios da família.
Tanto que Charles fez uma matéria sugerida pelo próprio Senna para encerrar a carreira. "Fiz uma matéria com ele em 1980 porque o pai dele não queria que o Senna corresse de carro. O pai dele queria que ele ficasse no escritório. O Ayrton falou comigo para fazer uma matéria porque ele ia parar de correr". Como sabemos, ele não parou.
Promessa do automobilismo
Desde o começo na carreira no kart, Senna era tido como uma das promessas brasileiras para chegar à principal categoria do automobilismo, a Fórmula 1. "Para muitos, ele era o kartista com maior possibilidade de chegar à Fórmula 1. Ele tinha o objetivo de chegar o mais rápido possível à Fórmula 1. Era um obstinado ao que ele queria".
O Ayrton falou comigo para fazer uma matéria porque ele ia parar de correr" - Charles Marzanasco
Com um foco singular, Charles ressalta que o piloto tinha a noção de qual seria o seu lugar e trabalhava sempre com a obsessão da F1. "Ele era", conta o assessor, "o primeiro a chegar e o último a sair do treino. Gostava muito de conversar com a equipe e sempre melhorar. O destino dele era ser campeão mundial."
O tempo foi passando e o paulista de Santana realizou o seu primeiro sonho de menino, primeiro a Fórmula 1 para depois ser campeão mundial. Só que o caminho era muito maior que cada circuito percorrido.
No tempo de Senna, como conta Charles, os pilotos de Fórmula 1 eram vistos com a visão romântica, muitos pilotos fumavam (inclusive a marca de cigarros Marlboro era uma das patrocinadoras), eram paqueradores, assediados e não se tinha a preocupação com se preparar fisicamente para os grandes prêmios. Senna foi diferente. O assessor lembra que o piloto sentia muito cansaço após as corridas. "Foi aí que ele começou a treinar".
Senna se caracterizava pela enorme habilidade na chuva e nos circuitos de rua. Eram dois de seus diferenciais. Mas a sensibilidade em situações adversas de local e temperatura veio por conta dos treinos. "O Ayrton não era tão bom na chuva e ele com determinação achou por bem treinar na chuva o máximo que podia. Quando chovia, piloto não gosta de andar na chuva, porque tem que 'se virar' para andar, pode ter um acidente. Então, ele passou a ter uma sensibilidade no molhado que nenhum outro piloto tinha", diz Charles.
"Nas duas situações mais perigosas para o piloto, chuva e circuito de rua, ele foi um fenômeno." - Charles Marzanasco
Relação com a mídia
Charles evidencia que Senna tinha uma ótima relação com os jornalistas. Sempre que alguém solicitava, o piloto atendia sempre. Tanto que nas suas voltas ao Brasil após corridas ou outros compromissos, antes mesmo de ir para sua casa, fazia coletivas de imprensa. Algumas delas duraram horas. "Ele se dava bem com quase todos os jornalistas, tanto no exterior quanto no Brasil."
Porém, nem tudo é só bons relatos. Em um dia de folga, Ayrton foi ao cinema em São Paulo. Lá, um jornalista, conta Charles, tentou gravar um material com o piloto. A resposta foi negativa e Senna pediu para que o assessor fosse contatado. Mesmo assim, o profissional de imprensa seguiu e teve de ser rechaçado. Alguns dias depois, saiu no jornal uma matéria citando que 'Senna não atende jornalista'. Porém, "Quando ele estava comigo, eu nunca presenciei uma cena de falar algo contra os jornalistas", relata.
Ayrton Senna ao centro de boné e Charles Marzanasco ao seu lado (Foto: Arquivo Pessoal)
Senna era sempre uma pessoa da mídia. Ele teve alguns relacionamentos amorosos e Charles destacou o namoro com a apresentadora Xuxa Meneghel. Segundo o assessor, não foi uma relação para "a mídia" ou de "marketing" como muitos afirmam. Tanto que Ayrton mudou sua rotina pela global.
"Quando ele passou a namorar a Xuxa, começou primeiro a ir para o Rio de Janeiro e depois vinha para São Paulo. Muitos falam que foi namoro mais de marketing, mas eu que convivi com ele, para você ter uma ideia, eu lembro que de dez coisas que ele falou para gente, umas nove eram sobre a Xuxa", relata.
Uma história que eu não esqueço dele me contar é que quando eles saíram de carro no Rio, "nossa, a Xuxa 'cê' não vai acreditar, ela acelera para caramba, dá até medo". - Charles Marzanasco
Gestos imortais
Outro grande relato sobre o ídolo nacional contado por Charles envolve a Copa do Mundo de 1986, no México. Na ocasião, o destaque da competição foi a Argentina de Diego Maradona, campeã sobre a Alemanha. O Brasil caiu nas quartas de final para a França ao perder nos pênaltis. Isso no dia 21 de junho, véspera do GP de Detroit na F1. Senna com sua Lotus preta conquistou a pole. Após a derrota do Brasil, franceses começaram a caçoar e brincar com Ayrton.
No mesmo dia de La Mano de Dios e o gol do século de Maradona sobre a Inglaterra, Senna se vingou da França ao seu modo. Ele venceu a corrida e pegou a bandeira do Brasil para desfilar pelo autódromo.
Outra grande história de bastidor contado por Charles foi o dia de uma coletiva de imprensa com jornalistas do mundo inteiro no Hotel Transamérica, em São Paulo. Senna sempre andava com um boné do seu patrocinador, o Banco Nacional. Nesse dia, Charles saiu do seu escritório e foi para o Hotel para preparar o evento. Na saída, tinha esquecido bonés, mas não buscou por pensar que não seria necessário. Senna sempre estava com um.
Mas quando tem que dar errado, vai dar errado. No dia, Senna não estava e faltava pouco para o evento. "Imagina o Ayrton aparecer sem o boné em uma coletiva para mais de 350 pessoas". O jeito foi achar uma alternativa, Charles foi a loja do Hotel procurar o boné e depois foi para a área externa. No estacionamento, o motorista salvador do Jornal do Brasil tinha um novíssimo do Banco Nacional. O assessor pegou e prometeu devolver após com um autógrafo.
Passou-se a coletiva e Charles foi procurar Ayrton para pegar o boné de volta, mas não o encontrou. O piloto tinha outro compromisso e foi direto ao helicóptero. Nisso, o assessor conta que mentiu duas vezes a Senna. Um dia depois, ele quis resolver a história e encontrou o piloto. Ao contar a história, Charles se assustou quando o piloto disse que sabia das mentiras.
Isso porque na saída do hotel, o motorista do Jornal do Brasil foi atrás do ídolo. Senna, pelo relato de Charles, disse:
"Eu sei porque quando fui sair do hotel, fui para o helicóptero e tinha um monte de gente lá. Foi passando e um cara gritando 'Senna, tem que me dar o boné assinado porque seu assessor foi lá me pedir".
Charles sentiu algo paranormal nesse dia, como se Senna estivesse lendo seus pensamentos. Ademais, Ayrton confidenciou a seus próximos que viu Deus a conquistar o campeonato mundial de 1988. "Esse cara é paranormal mesmo. Ele tinha coisas sobrenaturais. Ayrton não era muito de mentir, se ele viu, acho que ele viu mesmo."
Por fim, Charles contou do último encontro dos dois e o quanto chorou após a morte. A última vez foi em um evento de lançamento da Audi no Brasil nas datas do GP do Brasil de 1994 no final de março. Depois, a viagem e a morte no dia 1 de maio. O assessor se emocionou muito pela morte e pelo Milton da Silva, pai de Ayrton. Ele foi o porta-voz da família naquele momento.
Ayrton Senna abraçando Milton da Silva, seu pai
