
Em entrevista ao jornal A Crítica, o advogado Gustavo Passarelli trouxe detalhes sobre o recente acordo histórico envolvendo a demarcação de terras indígenas, destacando o papel conciliador do Supremo Tribunal Federal.

Ele enfatizou que, embora o acordo tenha gerado expectativas entre os produtores, é necessário ter cautela, pois ainda há muitas áreas em estudo e processos de demarcação em andamento pelo País. Passarelli ressaltou a importância de avançar com novos acordos de forma responsável, sempre visando à pacificação no campo e à retomada da vida dos produtores impactados. Confira a entrevita na íntegra:
A Crítica: A decisão foi um fato histórico em meio a esses embates de terras indígenas, não é?
Dr. Gustavo: Esse é um marco histórico na questão da demarcação de terras indígenas, especialmente porque agora se concretiza ou se concretizará a indenização pela terra nua ao produtor. Vale lembrar que a grande angústia dos produtores rurais afetados por esses processos sempre foi que, uma vez declarada a terra como indígena, a Constituição Federal não previa indenização pela terra nua, apenas pelas benfeitorias. Esse avanço foi conquistado ao longo de muitos anos, com a forte atuação de diversas instituições. É importante destacar que essa discussão começou quando o atual governador, Eduardo Riedel (PSDB), ainda presidia a Famasul. O presidente Marcelo Bertoni também teve um papel fundamental, assim como o governo estadual, liderado por Riedel, que teve grande destaque nessa luta pelo reconhecimento da possibilidade de pagamento da indenização pela terra nua, o que foi finalmente decidido no acordo firmado entre as partes no Supremo Tribunal Federal.
A Crítica: Esses produtores que vão receber pelas terras terão que sair, correto?
Dr. Gustavo: E, justamente por conta do acordo firmado, será realizado o pagamento não apenas pelas benfeitorias, mas também pelo valor da terra nua, com um valor consensual estabelecido. Os produtores têm 15 dias para deixar suas propriedades. Naquela região específica, a maioria das terras já estava ocupada pelos indígenas há alguns anos, restando poucas propriedades ainda em posse dos produtores. Agora, aqueles que ainda permaneciam na área começaram a se retirar, e, em seguida, ocorrerá o pagamento pela terra nua.
O advogado Gustavo Passarelli deu detalhes do acordo - (Foto: Lorena Sone)
A Crítica: O senhor poderia nos explicar um pouco mais sobre o que significa exatamente os termos "benfeitorias" e "terra nua"?
Dr. Gustavo: São duas situações distintas. As benfeitorias são os acréscimos que foram feitos ao imóvel, como, por exemplo, mangueiros, silos, sede, residências dos funcionários e cercas. Esses são bens que não fazem parte originalmente da terra, mas foram acrescentados ao longo do tempo. Já a terra nua refere-se à terra propriamente dita, ou seja, ao valor da propriedade em si, sem os acréscimos.
A Crítica: Alguns produtores, que estão nessas terras há tanto tempo, podem ter dificuldade em aceitar essa decisão. Como essas informações foram recebidas por eles? Causa ainda algum mal-estar essa questão de precisar sair das terras?
Dr. Gustavo: Acredito que não. Pelo que pudemos perceber, estando próximos dos produtores, inclusive durante o procedimento do acordo, o resultado não gerou uma reação negativa. Para muitos desses produtores, que estão envolvidos nesse processo há mais de 20 ou 30 anos, essa solução trouxe a possibilidade de cada um seguir seu caminho. Claro que, em um acordo, há concessões de ambos os lados, e ambos tiveram que abrir mão de algo. Os produtores cederam dentro dos limites do que consideravam razoável em termos de negociação de valores. Mas, o mais importante foi o marco histórico alcançado. Creio que, para eles, a sensação foi de alívio.
A Crítica: O senhor acredita que, após o ocorrido aqui em Mato Grosso do Sul, isso poderá desencadear novos acordos em outras regiões do país que enfrentam essa mesma situação há muitos anos?
Dr. Gustavo: Essa é a expectativa. O ministro Gilmar Mendes, ao proferir a decisão do seu despacho 87, que criou a Comissão de Conciliação no Supremo, da qual fazemos parte, tinha justamente a intenção de criar um modelo de acordo que pudesse ser expandido para todo o país, com o objetivo de promover a pacificação. A ideia é que outros estados sigam esse modelo. Obviamente, isso gera preocupações em relação ao orçamento, aos valores envolvidos e ao volume de áreas em nível nacional, que é muito grande. No entanto, a expectativa é que acordos como o de Antônio João se propaguem pelo país.
A Crítica: Dr. Gustavo, olhando para o cenário atual e pensando no futuro, quais são os principais desafios que o setor do agronegócio pode enfrentar com novas demarcações de terra aqui em MS? O senhor acredita que isso pode mudar o rumo das coisas ou ainda levará um tempo para que novas situações surjam?
Dr. Gustavo: Sempre que discutimos demarcação de terras indígenas, um princípio constitucional fundamental entra em questão: a segurança jurídica. Isso é uma grande preocupação, pois temos propriedades registradas, com título legítimo, em que os produtores possuem documentação completamente regular, muitas vezes com titulação que remonta a mais de cem anos. No entanto, essas áreas podem eventualmente ser declaradas como terras indígenas, o que gera muita insegurança. A esperança é que, com esse modelo de acordo, e o reconhecimento de que os produtores têm direito à indenização, possamos resolver todas as demarcações no Estado o mais rapidamente possível. Assim, todos poderão exercer suas atividades com segurança jurídica, realizar investimentos e projetos, e trazer a normalidade de volta o mais rápido possível.
A Crítica: É importante destacarmos a atuação do ministro Gilmar Mendes, Dr. Gustavo, pois ele criou um setor específico para tratar desse tema, que é tão relevante para o nosso país. Poderia comentar mais sobre isso?
Dr. Gustavo: Exatamente. A postura do Supremo, na tentativa de conciliar temas difíceis, tem se tornado mais frequente nos últimos anos, e essa atuação conciliadora da Suprema Corte exerce um papel importante. Sem dúvida, como você mencionou, o ministro Gilmar Mendes está deixando e deixará um legado significativo em sua atuação no Supremo, especialmente em acordos como este e outros que já foram firmados recentemente. Um exemplo foi sua participação na questão do ICMS nos estados. O que chamou atenção foi uma fala dele na primeira audiência de conciliação, quando disse que este é um tema muito sensível e que decisões judiciais por si só não resolveriam o problema, já que hoje uma decisão pode ser de um jeito, amanhã de outro, ou uma lei pode ser promulgada e depois declarada inconstitucional. Assim, as partes continuariam a discutir sem alcançar um resultado concreto. Portanto, essa intervenção do Supremo, com todo o poder e autoridade, e, nesse caso, através do ministro Gilmar, foi fundamental para que esse objetivo fosse finalmente alcançado.
A Crítica: Quais são os aprendizados que o senhor acredita que o setor do agronegócio já tirou e ainda vai tirar dessa negociação? Como esses aprendizados podem ajudar a preparar melhor o setor para futuras discussões em áreas estratégicas, como a região que faz fronteira com o Paraguai e outras áreas aqui no nosso Estado?
Dr. Gustavo: Eu diria que, olhando para este caso específico, com o qual estivemos muito próximos, e para os que ainda virão, acabamos conhecendo um pouco mais da realidade dessas situações. A principal sugestão ou conselho que daria é que os produtores entrem na mesa de negociação com a consciência de que será necessário ceder, mas por um bem maior, ou seja, um redirecionamento. Claro que ninguém gostaria de estar nessa posição, e é compreensível o sentimento de indignação dos produtores com a demarcação de suas áreas, que são de fato deles, adquiridas com muito esforço, onde investiram sonhos, vidas e projetos. Esse sentimento de incompreensão é justificável, mas o que discutimos bastante neste acordo é que, quando você está em uma situação sem alternativas claras, às vezes é preciso reconhecer que não há outra opção. É possível continuar discutindo no Judiciário por anos, ou optar por um acordo, ainda que o valor recebido não seja o ideal ou o valor exato da área, mas que permita seguir em frente.
Isso, claro, dependerá de cada caso específico. Alguns processos, como o de Antônio João, já estavam em uma fase avançada, com até decreto presidencial declarando a área como indígena. Em outros casos, ainda estão em fases iniciais. Então, o produtor precisa avaliar se vale a pena continuar discutindo para provar que sua área não é indígena, se acredita que tem provas suficientes, ou se prefere buscar um acordo. Essa avaliação será muito particular de cada caso, mas é importante que haja uma disposição para a conciliação e para o diálogo, não só por parte dos produtores, mas também da comunidade indígena. A vontade de negociar precisa vir de ambos os lados.
A Crítica: Como a Famasul se colocou à disposição para dar suporte a esses produtores? Existe alguma posição formal da Famasul em relação a oferecer apoio, visto que muitos desses produtores dedicaram suas vidas à produção de soja, milho e outras culturas?
Dr. Gustavo: A Famasul sempre teve uma preocupação significativa com esses produtores, especialmente quando se trata de pequenos agricultores. Um exemplo é a situação crítica em Douradina, onde há pequenos produtores rurais que dependem de suas áreas para subsistência. Nesses casos, existe a possibilidade de reassentamento, ou seja, ao invés de receberem pagamento em dinheiro, a União poderia oferecer uma nova área para que eles possam continuar suas atividades.
No caso específico de Antônio João, a Federação também deu todo o suporte possível, desde a fase pré-acordo, participando das discussões, orientando e estando presente nas audiências realizadas no Supremo. A Famasul é uma das federações mais atuantes no Brasil na questão da demarcação de terras indígenas.
Quanto aos produtores de Antônio João, cada família agora terá um recurso disponível e poderá decidir se retornará às atividades ou buscará outras alternativas. Cada família está em uma fase diferente da vida, com idades variadas e histórias que foram alteradas ao longo dessa longa discussão. Portanto, essa decisão dependerá da avaliação de cada família sobre o melhor caminho a seguir diante de tudo o que viveram.
A Crítica: E se tratando de pessoas que estejam passando por situação parecida e que ainda teve uma resolução sobre o caso?
Dr. Gustavo: Já tivemos a oportunidade de conversar com vários produtores que nos procuraram para entender o acordo e as perspectivas futuras. É natural que um acordo como esse gere muitas expectativas, especialmente entre os produtores envolvidos no processo. Todos que enfrentam esse tipo de problema desejam uma solução rápida para poder retomar suas vidas e redirecionar suas atividades, se necessário. Contudo, é essencial ter muita cautela nesse momento, pois o número de pretensões de demarcação de terras a nível nacional é muito grande. Existem muitas áreas em estudo e processos de demarcação pelo Brasil, o que envolve valores bastante significativos de indenização.
Por isso, a principal recomendação agora é ter paciência e não criar expectativas exageradas de que tudo será resolvido rapidamente ou que novos acordos serão feitos já na semana que vem. O processo não é simples, pois envolve questões de disponibilidade financeira que são desafiadoras. No entanto, é papel das instituições e da comissão criada no Supremo avançar nessa direção, escolhendo novas áreas para futuros acordos. O objetivo principal é alcançar a pacificação no campo.
