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GUSTAVO PASSARELLI

"Não é justo que os produtores rurais paguem essa conta que não é deles"

O representante jurídico da Federação da Agricultura de Mato Grosso do Sul (Famasul), falou dos desafios do marco temporal e a segurança jurídica

14 agosto 2024 - 12h30Carlos Guilherme
Advogado Gustavo Passarelli
Advogado Gustavo Passarelli - (Foto: Lorena Sone)

Em entrevista ao jornal A Crítica, o advogado e representante jurídico da Federação da Agricultura de Mato Grosso do Sul (Famasul), Gustavo Passarelli abordou os complexos desafios envolvendo o marco temporal e a demarcação de terras indígenas no Brasil.

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Passarelli enfatizou a importância do marco temporal para garantir a segurança jurídica no País, destacando que sua ausência pode levar a um retrocesso histórico nas demarcações, ameaçando os direitos de propriedade consolidados.

Ele também alertou sobre os impactos financeiros e a necessidade de soluções justas e equilibradas que considerem tanto os direitos das comunidades indígenas quanto a estabilidade dos produtores rurais. Confira a entrevista completa:

A Crítica: O que é o marco temporal?

Gustavo: O marco temporal, e isso é importante destacar, não está expressamente previsto na lei. Não há nenhuma disposição legal que defina especificamente o que é o marco temporal. O que aconteceu foi que, durante o julgamento envolvendo o Estado de Roraima, mais conhecido como o caso Raposa Serra do Sol, o Supremo Tribunal Federal utilizou a expressão "marco temporal". Essa expressão foi empregada porque o artigo 231 da Constituição Federal menciona as terras que os indígenas "ocupam" ou "habitam".

O legislador constitucional usou o verbo no presente, e a interpretação feita foi: "ocupam" e "habitam" quando? Na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Assim, no julgamento, foi estabelecido um marco temporal de ocupação das terras indígenas, vinculado à promulgação da Constituição em 1988. Esse conceito de marco temporal foi definido naquele momento e agora é retomado nessa legislação em discussão.

A Crítica: Como o senhor avalia o impacto das manifestações que aconteceram?

Gustavo: A reunião foi marcada por manifestações de apoio às comunidades indígenas, tanto por parte das entidades quanto das próprias comunidades presentes. A decisão do ministro Gilmar Mendes ao criar essa comissão tem como objetivo buscar a paz e a pacificação em um tema extremamente sensível e de difícil solução. É importante destacar que essa medida merece reconhecimento, pois o Poder Judiciário, por meio de um julgador, independentemente de quem seja, reconhece a complexidade de se alcançar uma solução consensual para o problema. Assim, a proposta é reunir todos os envolvidos em uma mesa de negociação para buscar uma alternativa que, mesmo não sendo a ideal para ambas as partes, seja fruto de consenso.

A intenção do ministro Gilmar é tentar harmonizar o que está na Lei 14.701 de 2023, que foi aprovada pelo Congresso, vetada pelo Presidente da República, e teve o veto derrubado pelo Congresso, com o julgamento do Supremo no Recurso Extraordinário 1.017.365 de Santa Catarina, onde o marco temporal foi questionado. A ideia é compatibilizar essa lei, que trata da indenização dos produtores rurais em caso de demarcações, com a decisão do Supremo. Apesar do risco de inconstitucionalidade da lei, que ainda depende de julgamento, existe uma PEC em trâmite no Congresso, já em regime de urgência, que também aborda o artigo 231 e o marco temporal.

Portanto, a proposta do ministro não é uma solução simples ou rápida. Sentar-se à mesa para discutir o assunto pode levar à identificação de um meio-termo. No entanto, a reunião foi marcada por uma forte resistência das comunidades indígenas, o que, confesso, me surpreendeu inicialmente, pois não esperava tantas manifestações contrárias à realização dessas sessões de conciliação.

A Crítica: O senhor representa a Famasul, e quais são os principais argumentos pela formação em favor dessa tese?

Gustavo: Quando se trata do marco temporal e da demarcação de terras indígenas, hoje enfrentamos duas questões importantes a serem discutidas. A primeira é sobre o domínio e a propriedade, e a segunda, sobre o título que o produtor possui. Nesse aspecto, a situação em Mato Grosso do Sul é juridicamente muito clara. Isso porque o estado possui uma realidade fundiária totalmente consolidada. Como foi bem mencionado, a Federação tem realizado um trabalho muito intenso desde 2008, discutindo as demarcações.

Na verdade, Mato Grosso do Sul é pioneiro no Brasil em tratar essa questão da demarcação de terras indígenas com tanto rigor e perseverança. A maioria dos títulos de propriedade no estado data de 1870 ou 1880, o que resulta em uma cadeia dominial completa, regular e, pode-se dizer, imaculada, sem nenhum tipo de problema em relação ao domínio.

O problema atual em relação à demarcação de terras indígenas, que a Federação tem se esforçado para resolver, são as invasões de propriedades. Atualmente, há mais de 110 propriedades invadidas, algumas há mais de 20 anos, sem que as ordens de reintegração de posse sejam cumpridas. Isso gera instabilidade e insegurança jurídica, sendo talvez o maior problema imediato e concreto que a Federação enfrenta hoje.

A Crítica: O senhor citou o exemplo de propriedades que foram invadidas há mais de duas décadas. Acredita que esse impasse poderá levar mais quanto tempo?

Gustavo: Essa questão é um processo que, como tal, passa por uma evolução obrigatória. Houve uma evolução significativa na discussão sobre a demarcação de terras indígenas, muito graças à atuação de entidades representativas de produtores rurais, como a Federação. No início, não se admitia nem se discutia a possibilidade de indenização pela terra nua, ou seja, a fazenda do produtor. Isso simplesmente não fazia parte do debate. No entanto, ao longo de quase 16 ou 17 anos, avançamos para um ponto em que hoje é pacífico, inclusive entre o Ministério Público Federal e as entidades que defendem os interesses indígenas, que a indenização é necessária. Esse foi um grande passo para a solução do problema.

Agora, estamos em uma segunda etapa, porque cada solução pode gerar novos desafios. Com a aceitação da indenização pela terra nua, surge uma nova questão: o tamanho dessa conta. Quem vai pagar essa conta? Se considerarmos o volume de áreas que se pretende demarcar em nível nacional, estamos falando de aproximadamente 200 bilhões de reais que deveriam ser pagos aos produtores rurais em todo o país. Isso levanta um grande problema.

Quando você me pergunta se isso será resolvido a curto prazo, eu digo que já avançamos muito, e a solução está posta na mesa. Se queremos demarcar terras indígenas e fazer justiça histórica com as comunidades indígenas, o que é completamente compreensível e justificável, é preciso reconhecer que essa conta não pode ser paga apenas pelos produtores rurais que possuem títulos, por uma classe que foi direcionada para lugares como o Mato Grosso do Sul para povoar e proteger as fronteiras. Não é justo que os produtores rurais arquem com essa responsabilidade sozinhos. Em última análise, a sociedade inteira terá que pagar essa conta, e o valor é muito elevado. Portanto, o próximo desafio que enfrentaremos, na minha opinião, será de natureza financeira.

A Crítica: Quais são as implicações jurídicas imediatas para o setor agrícola e para as propriedades caso o STF decida não adotar ao marco temporal?

Gustavo: No julgamento do Recurso Extraordinário 1017.365, o Supremo Tribunal Federal já indicou que o marco temporal estabelecido no julgamento anterior da Raposa Serra do Sol não é mais o mesmo. Agora, o que precisamos analisar é qual será o posicionamento do Judiciário. Há a questão de se prevalecerá o entendimento recente do Supremo, que, embora tenha relativizado o marco temporal, não o eliminou completamente. Em certos casos, ele pode até retroceder a um período anterior.

Portanto, a dúvida é se prevalecerá o entendimento do Supremo ou a legislação recentemente promulgada. Muito dependerá agora da conciliação sugerida pelo ministro Gilmar Mendes. Se essa conciliação não prosperar, o Supremo terá que decidir sobre a constitucionalidade da Lei 14.701. Se o Supremo decidir que a lei é constitucional, o marco temporal será estabelecido conforme a lei. Se decidir que a lei é inconstitucional, prevalecerá o entendimento do Supremo, que relativizou, mas não eliminou o marco temporal.

Por fim, ainda temos que aguardar o posicionamento do Congresso, que poderá votar uma PEC relacionada ao tema no futuro.

A Crítica: E diante dessa situação que atinge propriedades em Douradina, podemos dizer que as decisões do STF terão um impacto imediato no Estado de MS?

Gustavo: Eu participei dessas reuniões no Ministério Público Federal, que foram uma iniciativa do Dr. Marco Antonio Delfino, com o objetivo de trazer, em conjunto com o Estado de Mato Grosso do Sul, as entidades, os representantes políticos do Estado e das comunidades indígenas, além da própria Funai, para tentar encontrar uma solução. No caso específico de Douradina, a situação é ainda mais dramática do que em outras regiões do Estado, pois envolve pequenos produtores, alguns com áreas de apenas quatro hectares, que dependem de suas propriedades para a simples subsistência. Há pessoas que plantam alho para vender, e muitos desses pequenos produtores não têm alternativas ou outras fontes de renda, sendo que alguns são idosos e realmente não têm outra opção.

Essa tentativa de negociação proposta pelo Ministério Público Federal, infelizmente, não prosperou, e isso ocorreu pelos mesmos motivos que estão sendo discutidos nas sessões de conciliação no Supremo Tribunal Federal: uma recusa por parte das comunidades indígenas em negociar, especialmente em relação à indenização desses produtores rurais e ao reassentamento. Portanto, o processo não avançou.

Respondendo à sua pergunta, não há necessariamente uma vinculação direta entre o que está sendo feito no Supremo Tribunal Federal e as ações que estão sendo conduzidas pelo Estado de Mato Grosso do Sul. O governador Eduardo Riedel tem uma Secretaria de Estado específica dedicada a cuidar dessas questões, negociando áreas e trabalhando em paralelo para tentar resolver esse problema.

A Crítica: Um dos argumentos em favor do marco temporal é a segurança jurídica para investidores e proprietários de terra. Como o senhor acredita que a definição desse marco pode influenciar o ambiente dos negócios e os investimentos no agronegócio?

Gustavo: Quando falamos de marco temporal, o principal objetivo é garantir a segurança jurídica. Vou te dar dois exemplos que ilustram como a ausência de um marco temporal pode impactar negativamente essa segurança. Em um processo de demarcação no Estado de São Paulo, por exemplo, uma área próxima à represa Billings e à empresa de energia Furnas precisou ser demarcada porque era necessário passar uma linha de tensão de energia dentro de uma aldeia já demarcada há muitos anos. Isso é parte do processo. A comunidade indígena, no entanto, exigiu que a área fosse ampliada como contrapartida pela passagem da energia.

A Funai, então, iniciou o processo e demarcou uma área que originalmente tinha cerca de 100 hectares, ampliando-a para mais de 9.000 hectares. Mesmo assim, a própria Funai rejeitou essa demarcação. No entanto, essa área foi posteriormente ampliada para 17.000 hectares, englobando uma região de Mata Atlântica até Santos, sob o argumento de que esse era o caminho que os indígenas percorriam quando os bandeirantes chegaram ao Brasil. Ou seja, essa demarcação retrocedeu a um período de quase 400 anos, ou até mais.

Se permitirmos uma linha de raciocínio que considere que uma comunidade indígena esteve em algum local em um tempo tão remoto quanto esse, sem levar em conta o marco temporal, estaríamos, essencialmente, demarcando o país inteiro. O marco temporal busca exatamente isso: estabelecer um limite a partir do qual aqueles que estão além dele têm a segurança jurídica de que seu direito de propriedade, uma garantia fundamental prevista no artigo 5º da Constituição Federal, uma cláusula pétrea, será respeitado.

Portanto, a preocupação é que haverá um impacto negativo significativo na segurança jurídica se o marco temporal não prevalecer.

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