
Perder a chave do carro ou esquecer um nome conhecido pode assustar, mas nem todo esquecimento é sinal de algo grave. A amnésia, de fato, envolve falhas mais complexas na memória, como a incapacidade de reter ou recuperar informações relevantes da vida. E existem vários tipos, com causas e consequências bastante diferentes.

Um dos quadros mais curiosos e ainda pouco conhecidos é a amnésia global transitória (AGT). Essa condição, geralmente inofensiva e temporária, provoca uma falha repentina na memória recente. O paciente não consegue guardar novas informações e, ao mesmo tempo, pode ter dificuldade em acessar memórias do passado. Apesar disso, mantém a consciência, a identidade e a capacidade de linguagem intactas.
O neurologista Diogo Haddad, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, explica que a AGT pode durar de seis a oito horas. “A pessoa tende a repetir frases ou perguntas porque não forma memórias novas durante o episódio”, diz.
Gatilhos como enxaqueca intensa, estresse emocional, esforço físico exagerado e até relação sexual podem desencadear esse tipo de amnésia. Normalmente é um evento único, mas, se ocorrer mais de uma vez ou durar mais de 24 horas, exames como a ressonância magnética são indicados para investigar causas mais sérias, como um acidente vascular cerebral (AVC).
Quando o trauma afeta a memória
Há também a amnésia pós-traumática, associada a lesões físicas ou psicológicas. Concussões, socos e quedas na cabeça podem comprometer regiões cerebrais ligadas à memória. Isso acontece porque as células responsáveis por armazenar lembranças fazem parte de um circuito delicado, que pode ser danificado com impactos repetitivos.
Casos como o dos boxeadores Maguila, Éder Jofre e Muhammad Ali — todos diagnosticados com encefalopatia traumática crônica, conhecida como demência do pugilista — ilustram os efeitos dessas lesões. O problema também está no radar de esportes como rúgbi e futebol americano. No Brasil, desde 2024, a CBF criou uma regra que permite uma substituição extra por concussão, obrigando acompanhamento médico e afastamento do jogador por cinco dias.
Já traumas psicológicos podem causar amnésia dissociativa. Nesses casos, a mente “apaga” memórias associadas a situações de dor, abuso ou violência. “Às vezes, o paciente genuinamente não se lembra do trauma, mesmo quando o acompanhante relata o que ocorreu”, afirma Haddad.
Shows, euforia e apagões
Em 2023, fãs relataram amnésia após shows da cantora Taylor Swift no Brasil. Muitos disseram ter esquecido trechos inteiros das apresentações. O geriatra Ivan Aprahamian, da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, esclarece que nenhum show causa perda de memória por si só. O que pode acontecer é uma concentração tão intensa em alguns momentos que o cérebro ignora outros, o que dificulta a formação de uma lembrança completa.
Além disso, fatores como excesso de luz, som e emoção podem desorientar pessoas mais sensíveis, podendo inclusive causar episódios convulsivos, especialmente no lobo temporal, área do cérebro ligada à memória. Consumo excessivo de álcool e drogas também entra na lista de possíveis causadores de confusão mental e lapsos.
Amnésia crônica: quando se preocupar
Diferente das formas agudas e passageiras, amnésias crônicas duram mais de seis meses e estão geralmente associadas a doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer. No Brasil, estima-se que 1,2 milhão de pessoas convivem com algum tipo de demência, sendo que o Alzheimer responde por até 80% dos casos.
Ivan Aprahamian alerta para um ponto importante: é comum a memória se tornar menos eficiente com a idade. “Esquecer nomes, panelas no fogo ou ter palavras na ponta da língua são queixas frequentes e, em geral, não indicam algo grave”, explica. Mas quando o próprio paciente não percebe as falhas e são os familiares que notam as mudanças, o quadro pode ser preocupante.
Foi o que aconteceu com Armando*, juiz aposentado de 76 anos, diagnosticado com Alzheimer há três meses. A esposa notou que ele parou de reter informações cotidianas. Embora tenha mantido memórias afetivas por anos, como as do casamento e da infância, os lapsos mais recentes foram decisivos para buscar ajuda. O histórico familiar também pesou: o pai e o irmão mais velho também tiveram a doença.
“Eu não escolho o que tenho”, diz Armando, que encara o diagnóstico com serenidade, após já ter vencido dois cânceres. Ele e a esposa preferiram manter o anonimato para evitar o estigma que ainda cerca a condição.
Segundo os especialistas, é fundamental derrubar preconceitos sobre falhas de memória. “As pessoas associam memória a identidade, planejamento e linguagem. Por isso, ninguém quer ser visto como alguém que esquece”, afirma Haddad.
Aprahamian reforça que esquecer mais ao longo dos anos é natural, assim como perder força muscular. Para ele, o verdadeiro inimigo é o preconceito, que isola e desinforma. “O estigma também é uma doença. E precisa ser combatido com informação e acolhimento.”
