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SAÚDE

Cirurgias eletivas são adiadas no SUS por explosão de acidentes com motos

Aumento de traumas envolvendo motociclistas pressiona o Into e impacta fila de pacientes que aguardam cirurgias de alta complexidade no país

8 agosto 2025 - 07h20
Motociclistas de aplicativos transitam pelas ruas do centro do Rio
Motociclistas de aplicativos transitam pelas ruas do centro do Rio - (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

O crescimento vertiginoso dos acidentes com motocicletas está causando efeitos colaterais dramáticos no Sistema Único de Saúde (SUS). Referência nacional em traumatologia e ortopedia, o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), no Rio de Janeiro, vem sendo forçado a suspender parte das cirurgias eletivas de alta complexidade para priorizar vítimas de sinistros de trânsito, sobretudo envolvendo motociclistas.

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Somente em 2024, segundo dados oficiais da instituição, 1.450 cirurgias agendadas deixaram de ser realizadas por conta das transferências de emergência. Um em cada cinco desses pacientes transferidos havia sofrido lesões graves em acidentes com moto. Segundo o Into, cada cirurgia de urgência demanda tempo e estrutura que inviabilizam, em média, cinco procedimentos previamente programados.

“Nosso problema não é orçamentário, é físico. Não temos profissionais e estrutura suficientes para atender toda a demanda, que só aumenta”, afirma a diretora-geral do instituto, Germana Lyra Bähr.

A crise tem nome e números. De janeiro a junho deste ano, o Into passou a realizar cirurgias de alta complexidade em cinco vítimas graves por semana, todas transferidas de emergência após acidentes no trânsito. Em 2023, o total de cirurgias realizadas foi de 7 mil. Do total de pacientes operados no ano passado, 966 foram vítimas transferidas de urgência, um volume que equivale à paralisação de mais de um mês inteiro da rotina de cirurgias eletivas da unidade.

A comparação entre as duas modalidades revela outra preocupação: o custo. De acordo com Germana, cirurgias eletivas demandam menos tempo de internação e menos recursos. Já as de emergência, principalmente as causadas por acidentes de moto, exigem cuidados prolongados, uso de antibióticos de alto custo e envolvem risco de infecções.

“Esses pacientes chegam com traumas de rua, caem no asfalto, sofrem múltiplas fraturas e, muitas vezes, já estão infectados. Ficam, em média, 25 dias internados e exigem reabilitação por anos”, explica a diretora.

De acordo com dados do Sistema de Informações Hospitalares do Ministério da Saúde, entre 2010 e 2023, mais de 1,4 milhão de motociclistas foram internados após incidentes no trânsito, o equivalente a 57,2% de todas as internações hospitalares por lesões viárias no Brasil.

Pedestres aparecem em segundo lugar, com 19,4% das hospitalizações. Motoristas e passageiros de carros representam apenas 7,4% dos casos. O custo disso para o SUS ultrapassa os R$ 2 bilhões, só com internações de motociclistas.

O cenário se agrava com os dados preliminares do Viva Inquérito 2024, que mostram que 20,8% dos acidentados que deram entrada em serviços de emergência no país eram trabalhadores de aplicativos. Em capitais como São Paulo e Belo Horizonte, o índice chega a 31%.

A dimensão humana desse problema se revela em histórias como a de Eduardo Barbosa, de 39 anos, vítima de um acidente em setembro de 2022. Ele estava na garupa da moto de seu companheiro quando uma carreta invadiu a pista em uma curva na Serra da Mantiqueira, em Resende (RJ).

Mesmo com todos os equipamentos de segurança, Eduardo sofreu ferimentos gravíssimos: lesões no rosto, ombro, coluna e braço esquerdo. Chegou a correr risco de tetraplegia e quase perdeu o braço.

Vítima de acidente com moto, o entregador Eduardo Barbosa faz sessões de reabilitação no Into

Vítima de acidente com moto, o entregador Eduardo Barbosa faz sessões de reabilitação no Into (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

“Eu não sabia que existia um hospital no Rio com a qualidade que encontrei aqui. O acolhimento é essencial para quem passa por uma mudança tão radical de vida”, relata Eduardo, que está em tratamento no Into desde janeiro de 2023 e já passou por diversas cirurgias.

Hoje, ele faz sessões semanais de fisioterapia, terapia ocupacional e psicoterapia. “Tenho mais cinco cirurgias pela frente. Pode ser um tratamento para a vida toda”, admite. O entregador, que perdeu a capacidade de trabalhar, só conseguiu acessar o auxílio-doença por estar regular como microempreendedor individual (MEI).

Eduardo integra o grupo de pacientes que passa por reabilitação no Laboratório de Atividade da Vida Diária do Into, onde são reaprendidas tarefas como cortar alimentos, varrer a casa ou dobrar roupas. A terapeuta ocupacional Martha Menezes Lucas, especialista em lesões do plexo braquial, acompanha o tratamento de Eduardo e de dezenas de outros motociclistas.

“Noventa por cento dos meus pacientes são motociclistas. Essas lesões acontecem com muita facilidade nesses impactos, principalmente em entregadores que não têm experiência com moto e sofrem quedas graves”, explica Martha.

Martha Menezes Lucas, terapeuta ocupacional do Into, conta de 90% de seus pacientes são motociclistas

Martha Menezes Lucas, terapeuta ocupacional do Into, conta de 90% de seus pacientes são motociclistas (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

As consequências são profundas: comprometimento motor, perda de força, dor crônica, sequelas irreversíveis e, em muitos casos, a impossibilidade de retornar ao trabalho. “É muito comum que o paciente seja o principal provedor da casa. Quando ele perde a capacidade de trabalhar e precisa de anos de reabilitação, a vida familiar e social desaba”, alerta a terapeuta.

Além da explosão de acidentes, o Into ainda lida com o envelhecimento da população e a consequente alta de doenças ortopédicas crônicas. Segundo Germana Lyra Bähr, a maior expectativa de vida não tem sido acompanhada por melhorias na saúde preventiva, e isso se traduz em mais pacientes com osteoartrite, necessidade de próteses e outras condições que exigem cirurgias especializadas.

“O Brasil vai precisar de cada vez mais atendimento ortopédico. Se aumenta a demanda de pacientes para eletivas e também para emergências com acidentes, não conseguimos dar conta de tudo. Chega um momento que falta gente e sala para operar”, afirma.

A dependência da moto como ferramenta de trabalho expõe uma fragilidade estrutural: boa parte dos motociclistas acidentados atua de forma informal, sem proteção social. Quando se machucam, perdem a renda, a autonomia e, em muitos casos, ficam sem acesso a benefícios públicos.

“É uma geração inteira sendo destruída no trânsito em nome de uma mobilidade que o país não consegue sustentar com segurança. É uma epidemia silenciosa e cruel”, resume Martha Menezes.

Enquanto o Brasil discute o futuro da mobilidade e do trabalho, os corredores dos hospitais seguem recebendo, todos os dias, novas vítimas sobre duas rodas — e uma fila de pacientes eletivos segue parada, esperando por uma vaga que talvez não venha.

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