
Após a aprovação do chamado PL da Dosimetria pela Câmara dos Deputados, o Senado e o governo federal se mobilizam para conter os efeitos colaterais do texto que, além de reduzir penas de envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro, pode abrir caminho para o abrandamento de punições a diversos crimes pelo país.
O projeto foi aprovado por 291 votos contra 148 e altera a forma como o Supremo Tribunal Federal (STF) calcula as penas dos réus condenados por participação na tentativa de golpe. O texto original traz quatro mudanças principais:
-
Proíbe a soma das penas para crimes praticados no mesmo contexto contra o Estado democrático de Direito;
-
Reduz em até dois terços a pena para quem agiu em “contexto de multidão”, sem exercer papel de liderança ou financiar o ato;
-
Estabelece progressão de regime a partir de 1/6 (16,6%) da pena, retomando a regra geral;
-
Permite abatimento de pena por estudo ou trabalho, mesmo para quem cumpre prisão domiciliar.
O risco, apontado por especialistas e por órgãos do governo, é que as novas regras possam ser aplicadas para crimes diversos, inclusive sexuais e contra a administração pública, como alertou o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
Articulação no Senado e no governo
O relator do projeto no Senado, Esperidião Amin (PP-SC), está trabalhando em conjunto com os senadores Alessandro Vieira (MDB-SE) e Sergio Moro (União-PR) para ajustar o texto. A ideia é manter os pontos considerados válidos, mas eliminar trechos que podem abrir precedentes jurídicos perigosos.
“Estamos trabalhando para preservar o desejado e afastar o indesejável”, disse Amin, sem detalhar quais dispositivos devem ser modificados.
Vieira, que também atua na elaboração de soluções técnicas, classifica o projeto como “casuísta” e aponta que o texto pode provocar um “desvio interpretativo” da lei penal, afetando não apenas os envolvidos no 8 de Janeiro, mas outros criminosos.
“Quando eu obrigo aquela interpretação de concurso formal, abro a possibilidade de que se aplique a mesma regra para outros crimes. Tem vários juristas alertando para esse risco”, afirmou.
Governo alerta para risco de novo ataque à democracia
A articulação política do governo está sob responsabilidade da ministra da Secretaria de Relações Institucionais (SRI), Gleisi Hoffmann. Pelo MJSP, o secretário de Assuntos Legislativos, Marivaldo Pereira, coordena os ajustes técnicos. Ele afirma que o projeto atual pode “contratar um novo golpe” em 2027, ao facilitar a pena de crimes em contexto coletivo.
“Se eles (bolsonaristas) fizerem a mesma coisa em 2027, nos primeiros dias de um novo governo, depois de perderem a eleição, podem ter redução de até dois terços na pena. O projeto basicamente contrata o golpe de Estado de 2027”, afirmou Marivaldo ao Estadão.
O MJSP considera especialmente problemático o artigo que permite progressão com percentual menor de pena para condenados por crimes graves que não são considerados hediondos. Entre eles estão:
-
Violação sexual mediante fraude (art. 215);
-
Importunação sexual (art. 215-A);
-
Assédio sexual (art. 216);
-
Registro não autorizado da intimidade sexual (art. 216-B);
-
Corrupção de menores (art. 218);
-
Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A);
-
Divulgação de cena de estupro ou pornografia (art. 218-C);
-
Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual (art. 228).
Contradição com o PL Antifacção
Enquanto o PL da Dosimetria afrouxa punições, outro projeto recentemente aprovado no Senado, o PL Antifacção, endurece penas e dificulta a progressão de regime. Relatado por Alessandro Vieira, o texto vai na direção oposta e evidencia a necessidade de uniformidade legislativa.
No início do ano, Vieira chegou a apresentar proposta alternativa ao PL da Dosimetria, com base no princípio da consunção – que absorve o crime menos grave pelo mais grave, diferente do “concurso formal” adotado no texto da Câmara.
“Estamos avaliando as alternativas técnicas mais seguras para evitar que as mudanças legais tenham efeitos não intencionais”, explicou.
A expectativa é que o Senado modifique o projeto e envie um novo texto para a Câmara. O governo acompanha de perto as articulações para garantir que não haja brechas que favoreçam a impunidade.

