
A Câmara dos Deputados aprovou, com ampla maioria, o novo marco legal de combate ao crime organizado, encerrando uma batalha política que expôs divergências entre o governo Lula e o comando da Casa. Mesmo após seis versões apresentadas pelo relator Guilherme Derrite (PP-SP), o Planalto não conseguiu adiar a votação nem retomar o texto original do Ministério da Justiça.
A escolha de Derrite — secretário de Segurança licenciado do governo Tarcísio de Freitas — já havia causado tensão entre o Executivo e o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB). No plenário, porém, a disputa se ampliou quando todas as tentativas de mudança sugeridas pelo governo foram rejeitadas.
O projeto aprovado cria o chamado Marco Legal do Combate ao Crime Organizado, que endurece punições, reorganiza regras de confisco de bens e unifica condutas criminais hoje espalhadas por diferentes legislações. Para a base governista, o texto final aprofunda insegurança jurídica; para o relator, representa uma modernização necessária do aparato de enfrentamento ao crime.
Endurecimento de penas e nova tipificação
O novo marco amplia significativamente as penas para integrantes de facções, milícias e grupos paramilitares. As punições passam a variar entre 20 e 40 anos de prisão, podendo chegar a 66 anos em casos de liderança com agravantes. Todos os crimes incluídos passam a ser considerados hediondos, restringindo benefícios como progressão de regime e saídas temporárias.
O projeto também cria a figura da “organização criminosa ultraviolenta”, categoria que reúne práticas antes dispersas no Código Penal, na Lei de Drogas e na Lei Antiterrorismo. Com isso, condutas e penas ficam concentradas em um único marco regulatório.
Confisco antecipado e ação civil sem prescrição
Outro ponto de impacto é o mecanismo de perda de bens. O texto permite que o juiz determine o confisco ainda na fase de inquérito, desde que haja risco de dissipação ou indícios de origem ilícita. A proposta também cria uma ação civil autônoma, sem prazo de prescrição, autorizando o Estado a perseguir patrimônio associado ao crime organizado mesmo sem condenação definitiva.
Críticos alertam que a falta de limites temporais e critérios mais claros pode gerar insegurança jurídica. Já Derrite argumenta que o dispositivo corrige brechas usadas para ocultação de bens e lavagem de dinheiro.
Disputa por recursos apreendidos
Um dos trechos mais sensíveis para as corporações policiais altera o destino dos valores obtidos com bens apreendidos. Segundo o texto aprovado, investigações estaduais destinam os recursos aos fundos dos estados. Já operações com participação da Polícia Federal passam a enviar os valores ao Fundo Nacional de Segurança Pública, e não ao Funapol, que financia diretamente o trabalho da PF.
A cúpula da Polícia Federal avaliou que a mudança pode reduzir recursos para operações complexas, especialmente aquelas que dependem de deslocamento e inteligência, hoje financiadas justamente pelo Funapol.
Outras medidas aprovadas
Entre os dispositivos incluídos no texto estão:
• Julgamento por colegiado de juízes de primeira instância, aumentando a proteção a magistrados envolvidos em casos de organizações criminosas;
• Audiências de custódia por videoconferência, permitindo apresentação remota do preso ao juiz;
• Banco nacional de registro de criminosos, com dados unificados de integrantes de facções e milícias;
• Suspensão do CNPJ por até 180 dias de estabelecimentos envolvidos em receptação ligada ao crime organizado;
• Suspensão do direito ao voto para presos em estabelecimentos prisionais, mesmo sem condenação definitiva — ponto incluído por emenda e considerado controverso por juristas;
• Reforço de que o marco não interfere em procedimentos da Receita Federal e do Banco Central.
Próximos passos no Senado
A proposta agora segue para o Senado e será relatada por Alessandro Vieira (MDB-SE), que já sinalizou ajustes. A expectativa é que os senadores revisem trechos considerados problemáticos tanto por especialistas quanto pelo governo. Vieira afirmou que pretende apresentar seu relatório ainda este mês.
O marco antifacção se tornou mais um capítulo da disputa por protagonismo na agenda de segurança pública — tema que ganhou força entre estados e Congresso e, apesar do esforço do Planalto, escapou do controle do governo na Câmara.


