
O silêncio, a tranquilidade e a segurança de um quarto podem ser apenas aparentes, dependendo do que há por trás da tela do celular. Redes criminosas, como a de tráfico de pessoas, usam a internet em várias etapas do crime, incluindo-se a publicização de “serviços”, o aliciamento, o controle e a exploração de potenciais vítimas. Um indicador da frequência dessas práticas é o volume de denúncias de conteúdos suspeitos, que têm se acentuado nos últimos anos: a alta é de 152% na comparação entre o período de 2022 a 2024 com o triênio anterior.


A atenção ao problema e a necessidade de ações de proteção das vítimas, de prevenção e de enfrentamento ao crime são reforçadas no fim deste mês, devido ao 30 de Julho, o Dia Mundial, Nacional e Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Em Mato Grosso do Sul, o Dia Estadual foi instituído pela Lei 6.083/2023. A mesma normativa também cria a Campanha Coração Azul, realizada na última semana deste mês. Mundialmente, a data foi instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2013 e, no País, pela Lei 13.344/2016.
"O tráfico de pessoas é um crime silencioso, cruel e bilionário, que destrói vidas e famílias”, considera o deputado Gerson Claro (PP), autor da lei estadual. “A Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul tem ampliado o compromisso na conscientização e no enfrentamento dessa prática, que infelizmente se modernizou com a internet. Hoje, os aliciadores agem nas redes sociais, disfarçados de ofertantes de oportunidades. Por isso, é fundamental alertar nossa população, principalmente os jovens, sobre os riscos e as armadilhas do ambiente virtual. A Lei Estadual que institui o Dia de Enfrentamento e a Campanha Coração Azul é um marco nessa luta, que exige o envolvimento de toda a sociedade”, acrescentou o parlamentar.
Crescimento de denúncias

Dados do Canal de Denúncias da SaferNet Brasil – hotline brasileiro para denúncias de crimes cibernéticos contra os direitos humanos – mostram intensificação dos registros nos últimos anos. O canal denuncie.org.br recebeu, de 2022 a 2024, o total de 2.976 denúncias de links com conteúdo suspeito de tráfico de pessoas – foram 1.194 em 2022, 810 em 2023 e 972 em 2024. Em relação aos três anos anteriores (219 a 2021), que somam 1.177 denúncias, a alta é de 152%.
A majoração pode indicar tanto atuação mais intensa dos traficantes nos ambientes virtuais quanto movimento maior da sociedade em denunciar conteúdos suspeitos.
As denúncias são encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF), o que resultou, apenas no ano passado, na remoção de 278 páginas (URLs). De 2017 a 2024, a SaferNet Brasil recebeu e processou 5.274 denúncias, relativas a 2.246 páginas. No período, foram removidas 1.517 páginas com conteúdo relacionado a tráfico de pessoas.
Os registros da SaferNet Brasil integram o novo Painel de Dados sobre Tráfico de Pessoas do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), lançado no início deste mês. A pasta também lançou, na ocasião, o Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas de 2024.
No Relatório, o MJSP informa, entre outros dados, resultados de entrevistas com atores-chave e de aplicação de questionário a instituições participantes. Para 78% dos entrevistados, a rede de tráfico de pessoas usa a internet, sobretudo, para o recrutamento das vítimas.
O levantamento também mostrou que as mídias sociais são o principal meio de aliciamento no tráfico de pessoas para fins de exploração sexual – foram mencionadas em 52% dos casos. Já no tráfico para fins de trabalho em condições análogas à escravidão, o agenciamento pela internet (26%) é a segunda estratégia mais usada, superada apenas pelo recrutamento por conhecidos ou amigos de amigos (28%).
Clique aqui para acessar o Painel de Dados e o Relatório Nacional sobre o Tráfico de Pessoas do MJSP.
Defensora alerta quanto aos perigos da internet
"Você não deixaria seu filho andar sozinho numa avenida movimentada à noite. Mas e na internet? Não é igual ou até pior?", questiona a defensora pública Thaisa Raquel Defante, coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH) da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul (DPGE-MS). Ela também integra o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e coordena o recém-criado Núcleo Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP/MS).
A internet tem características propícias para a atuação criminosa, conforme nota Thaisa Defante. “É muito ágil, veloz”, caracteriza a defensora. E do outro lado da tela, pode ter pessoas com vulnerabilidades ou desejos que as tornam vítimas potenciais. “São pessoas com alguma fragilidade, anseio. E isso é usado pelos aliciadores”, afirma.
“O agenciamento pela internet é customizado e atinge as pessoas nas suas fragilidades, quaisquer que sejam elas. Também atinge as vítimas por meio da emoção, do desejo, da vontade”, detalha a defensora pública. “Alguém pode pensar assim: 'Ah, tenho vontade de trabalhar em outro país, de conhecer outro país, de ser bailarina ou ser jogador de futebol...' Aí essa pessoa recebe uma proposta de alguém que vai conversando e ganhando a confiança dela”, exemplifica a defensora, completando que, no final deste enredo, a pessoa se dá conta de que se tornou vítima do tráfico.

A defensora também adverte quanto aos riscos do uso irrestrito do celular por crianças e adolescentes. "É preciso atenção ao uso das redes, dos jogos online. Os pais devem vigiar o conteúdo que está sendo visto. Muitas vezes, você acha que a criança ou adolescente está seguro do seu lado, na sua casa, quando, na verdade, pode estar conversando com um aliciador, com um agenciador, e você nem desconfia disso. E pode acontecer de seu filho apagar a conversa e você nem ficar sabendo", alerta. "Nós não podemos negligenciar esse cuidado quanto ao uso da internet, pois ela é usada como uma ferramenta para práticas criminosas", acrescenta.
Mas, afinal, o que se configura como tráfico de pessoas?

As características do crime de tráfico de pessoas estão elencadas no Artigo 149-A do Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940), como informa a defensora pública. Esse dispositivo estabelece que "agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso" para finalidades diversas são práticas do tráfico de pessoas.
"Essas finalidades são: remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo; submissão a trabalho em condições análogas às de escravo; imposição de qualquer tipo de servidão; adoção ilegal; ou exploração sexual", lista a defensora, citando dispositivos do Código Penal. "Então, temos condutas relacionadas tanto ao trabalho em condições análogas à escravidão quanto a outras formas de exploração", enfatiza.
Explorando vulnerabilidades
O Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas de 2024 mostra, a partir de questionários com profissionais que atuam na prevenção e enfrentamento do tráfico e na proteção das vítimas, que as redes criminosas exploram diversas situações de vulnerabilidade.
Dos profissionais entrevistados, 22% indicaram as condições socioeconômicas precárias como a principal vulnerabilidade observada nas vítimas de tráfico. Outros fatores mencionados foram: baixa escolaridade (18%), condição de migrante ou refugiado (14%), mulher (13%), pessoas pretas e pardas (12%), crianças e adolescentes (9%), população LGBTQIA+ (8%), indígenas (2%) e outros (1%).
MS conta com um Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
A defensora Thaisa Defante informou que Mato Grosso do Sul tem, finalmente, um Núcleo Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP/MS). “A DPGE-MS passou a atuar como Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, o NETP. Trata-se de uma unidade administrativa, cuja função principal é implementar e fortalecer a política de enfrentamento ao tráfico de pessoas em nível local.”, explicou.
O NETP, segundo informou a defensora, é vinculado ao Ministério da Justiça e tem alcance estadual, visando fortalecer a rede de enfrentamento e de atendimento às vítimas, e de prevenção e repressão. “Por que eu falo sempre nesses três eixos: prevenção, assistência à vítima e repressão? Porque são os eixos a serem trabalhados no enfrentamento do tráfico de pessoas, especialmente pautados no 4º Plano Nacional, elaborado em 2024”, pontua.
"Gostaria de finalizar dizendo assim: Denuncie. Quando tiver uma suspeita, uma situação de tráfico de pessoas, você pode fazer uma denúncia anônima. Denuncie para o Disque 100 ou Disque 180. O importante é sempre estar atento. Se você tem alguma desconfiança, deve denunciar. A denúncia é completamente anônima", orienta Thaisa Defante.
Acesse aqui a entrevista na íntegra com a defensora pública Thaisa Raquel Defante.
Serviço
O MJSP disponibiliza várias publicações (clique aqui) sobre tráfico de pessoas, como cartilhas com orientações, guias para identificação de situações suspeitas, documentos sobre proteção e assistência às vítimas, guias para jornalistas, estudos, pesquisas, entre outros materiais.
Uma dessas publicações é voltada para crianças e adolescentes. Trata-se de uma edição especial da Turma da Mônica Jovem, intitulada “Sonho perigoso” (clique na imagem ao lado). O gibi resulta de parceria do MJSP com o Instituto Mauricio de Sousa, como parte das ações de prevenção e sensibilização sobre o tráfico de pessoas no Brasil.
Denúncias de situação suspeita de tráfico de pessoas e outras violações dos direitos humanos podem ser feitas pelo Disque 100 e pelo Disque 180. Para denunciar crimes contra os direitos humanos na internet, acesse denuncie.org.br.
