
Nos corredores frios da Casa da Mulher Brasileira, entre pastas empilhadas e olhos cansados de policiais civis que revezam turnos diante de monitores, um mutirão silencioso tenta reparar uma dívida de Estado. São mais de seis mil boletins de ocorrência registrados nos últimos anos na DEAM (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), em Campo Grande, que estavam, até agora, engavetados — sem inquérito, sem despacho, sem resposta.

É como se cada folha ignorada tivesse o peso de um pedido de socorro não escutado.
Em março de 2025, pouco mais de um mês após o feminicídio da jornalista Vanessa Ricarte — assassinada pelo ex-noivo após denúncias arquivadas —, a Polícia Civil do Mato Grosso do Sul criou um Grupo de Trabalho (GT) para tentar reverter essa estatística da omissão. A força-tarefa tem 90 dias para vasculhar os registros esquecidos. A lista é longa, o tempo é curto.
Números que falam - O primeiro relatório da operação cobre as duas quinzenas de março. No total, 1.116 boletins foram analisados. Destes, 380 viraram inquérito. Outros foram arquivados ou encaminhados para análise complementar. No meio disso, há ainda procedimentos digitalizados, pedidos de prisão preventiva, mandados de busca e apreensão.
Foram também organizados fisicamente 1.677 boletins e analisados outros 3.600 registros mais recentes. Tudo isso enquanto novos casos continuam chegando, todos os dias.
O ritmo do GT é cirúrgico e cumulativo: além de avaliar o que já existia, os agentes tentam criar um novo fluxo — mais ágil, mais eficaz, menos propenso a falhas como as que permitiram que o nome de Vanessa virasse manchete.
A máquina e seus operadores - O grupo é formado por delegados, escrivães e investigadores. Gente acostumada a ler entrelinhas e desfiar contradições. Nomes como Wellington de Oliveira, Marcelo Alonso, João Reis Belo e Juliano Cortez Penteado — coordenadores da equipe técnica — trabalham ao lado de outros 13 delegados designados exclusivamente para a tarefa.
Entre eles, há homens e mulheres que já lidaram com crimes complexos, mas que agora enfrentam uma montanha menos visível: a burocracia atrasada que impede a Justiça de acontecer. O esforço também mira a consolidação de um painel de gestão no SIGO (Sistema Integrado de Gestão Operacional), uma tentativa de automatizar o que, por muito tempo, foi manual e sujeito ao esquecimento.
A morte que motivou a força-tarefa - A origem do GT não está apenas nos números, mas na comoção pública. O assassinato de Vanessa Ricarte, no dia 12 de fevereiro, acendeu os alertas de instituições que já convivem com a sobrecarga há anos. Ela havia denunciado o ex-noivo. A denúncia não gerou resposta a tempo. As falhas no atendimento vieram à tona com a brutalidade do crime. A pressão social exigiu ação.
Desde então, a delegacia virou símbolo de uma falha institucional: o lugar onde mulheres vão pedir ajuda, mas nem sempre são ouvidas com a urgência necessária. O GT é uma tentativa de reverter essa percepção.
