
Era uma vez uma linda princesa que nasceu em Santa Cruz do Monte Castelo no ano de 1965. A propósito, sua cidade paranaense até que tem castelo no nome, mas o que será narrado a seguir não é um daqueles clássicos contos de fadas. É sim uma história real que às vezes se apresentou cruel, porém tem se sobressaído com capítulos incríveis! Tudo isso sobre uma menina julgada improvável que se tornou imparável. Para adiantar apenas a jornada profissional, de escrevente judicial em Naviraí, Adenir Alves da Silva Carruesco foi ser escrivã em Dourados, depois juíza do Trabalho no TRT23, onde figurou como a primeira mulher negra da carreira da magistratura, e onde também e além, é a primeira desembargadora negra de carreira a presidir o Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso.

Realizações não só pessoal, mas coletivas, regidas por alguém que entendeu cedo que precisava comandar seu destino. “A vida determinou onde eu nasci, como é que eu nasci. Eu nasci pobre, eu nasci negra. Agora, o que é que eu vou fazer com tudo isso que a vida fez de mim? Isso que compete a mim. Assim, nada pode me parar”, explica esta protagonista de tamanha garra. E se for pensar na velocidade que ela imprimia nos 100 metros rasos nos jogos escolares em Naviraí...
Bem, dessa época vem uma contribuição colossal. Por isso, guarde esse nome, e no coração: Napoleão Teodoro de Souza. Ele era jovem quando dava aula na Escola Estadual de Primeiro e Segundo Graus Presidente Médici, e disse para Adenir, que até então era uma aluna excluída e considerada feia aos olhos torpes para ser uma princesa, que ela podia sim ser a rainha do baile, que tinha brilho próprio. E aí o jogo virou. “Ele me colocou para treinar vôlei. Agora imagina jogar vôlei com 1,56 metro? Mas ele dizia que eu era capaz, me incentivava, dizia que eu era bonita e aquilo me deu forças. Depois do vôlei, descobri o atletismo, e ganhar medalhas me mostrou que eu poderia ir muito mais longe do que pensava”.
Adenir então se conectou com sua ancestralidade e suas raízes. Por falar nisso, chegou o momento de apresentar os pais, dona Geralda e seu Selvino, trabalhadores braçais de lavouras de café e analfabetos funcionais. “A minha mãe, toda suja de terra, olhava e tinha uma moça que passava muito bem-vestida, na concepção dela. E ela via essa pessoa passar limpinha, que era a professora que ia dar aula na fazenda. E aí ela pensava o seguinte, mesmo sem ter namorado ainda: um dia eu vou me casar e eu quero ter uma filha e que ela seja professora. Que ela não tenha essa vida que eu tenho, tão difícil. E aí por isso que ela me deu o nome de Adenir, que era o nome daquela professora que ela via passar enquanto ia para a roça, às cinco da manhã, levando a enxada, a moringa de água, e tendo nos pés aquele chinelo surrado”.
A lembrança de infância de Adenir, que também chegou a ser professora (sua primeira formação para orgulho da mãe), é toda da roça. Doces memórias porque os Silva sabem desaforar as circunstâncias. E olha que o mundo para além do portão da casa deles era bastante hostil. Para explicar melhor, em Naviraí, para onde se mudaram em busca de melhores oportunidades, a dona desta história passou por um dos episódios mais dolorosos e covardes de sua vida. Isso aos oito anos de idade.
Foi assim: uma colega de escola decidiu passar de bicicleta bem pertinho de Adenir. Tirando fina, expressão aqui usada para tornar clara a provocação. Adenir aguentou o máximo que pôde até se defender, empurrando a menina. No desfecho totalmente inesperado, a garota contou para a irmã mais velha, que era professora da escola, que Adenir deliberadamente a derrubou da bicicleta. Logo que Adenir chegou no colégio, foi confrontada pela professora irada, no pátio da escola. Sem ter a mínima chance de se defender ou explicar sua versão dos fatos, se viu atingida por uma avalanche de injúrias raciais. A autoridade escolar berrava coisas do tipo “negra suja, negra sebosa, negra ordinária, quem você pensa que é? Não conhece o seu lugar?”.
Para quem “a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional” (frase de Carlos Drummond de Andrade apreciadíssima pelos budistas), seu lugar é muito bem por ela conhecido. Adenir definitivamente correu para o esporte e o pódio sempre sorriu para ela. Também assumiu a dianteira nos estudos e logo foi ser professora no maternal. Mas para quem sabe se desafiar e gostaria de ganhar um pouco mais, “apareceu uma vaga em uma agência bancária. O banco só contratava pessoas com boa aparência. Não entrei e aí aquilo dali me deu um banho de água fria. Com essa aparência, eu vou ter que procurar trabalho onde só a minha competência e só o meu próprio esforço vão determinar. Eu não posso depender de qualquer outra coisa”.
Diante disso veio a reação e, para abrir a porta seguinte, prestou concurso público para escrevente judicial no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Completava agora 18 anos. “Eu fui muito bem nas provas escritas, mas tinha prova de datilografia. A máquina travou tudo. Não ia nem pra frente nem pra trás. Meu Deus do céu! Aí quem estava conduzindo o processo era o Dr. Alécio Antônio Tamiozzo. Ele olhou pra mim e pediu para eu fazer na próxima turma, e a máquina travou de novo. Fiz uma confusão e ele me deixou fazer de novo. Ele percebia que era nervosismo”. Bem desse modo ela conheceu mais um ser humano que teve um olhar diferenciado e bastante próspero sobre ela.
Oportunidade devidamente confiada e Adenir passou em segundo lugar, mesmo em desarmonia com a máquina datilográfica. Quando lotada no Fórum em Naviraí, surgiu uma vaga na 3ª Vara Cível em Dourados. Mas assim como têm pessoas generosas, têm aqueles que insistem em desencorajar. “Falei assim: não sei se eles vão estudar o tanto que eu vou estudar. Foi assim que eu fui para o Tribunal de Justiça em Dourados, onde fui escrivã de 1985 até 1994. E me apaixonei pela magistratura”. Fez vestibular e, ainda bem, foi aprovada para cursar Direito na Unigran.
Encorajada que só, foi dessas admissões até a aprovação no concurso para juíza do Trabalho em Mato Grosso, e lá vem mais uma boa história. “Quando eu passei para magistrada, eu contei pra minha mãe. Ela falou ´nossa, filha, que bom! Você tá feliz?´. Só que ela não tinha noção do que é um cargo de juiz para a sociedade e lá em Naviraí ela foi no mercado, em algum lugar, e as mulheres estavam de bate-papo ali. Uma disse que o filho tinha se formado contador. A outra falou, minha filha é tal coisa. Nisso minha mãe falou a minha filha é juíza. Aí diz que o povo todo parou”. Imediatamente dona Geralda voltou pra casa e perguntou para Adenir: que negócio é esse de ser juíza?
Nessa autoridade e responsabilidade públicas, atuou em Alta Floresta, Primavera do Leste e Rondonópolis, ficando no portal mato-grossense do agronegócio por 16 anos, já que tomou posse como desembargadora em dezembro de 2021 e foi morar em Cuiabá. Tão logo, em dezembro de 2023, se torna presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região para o biênio 2024/2025. “Mas a minha história no Mato Grosso do Sul é muito forte. O que me conduziu até aqui, onde eu estou hoje, é toda a história que eu vivi no Estado”.
Um ´era uma vez´ realmente encantado que contou com aliados como o professor Napoleão e o Dr. Alécio, amigos iluminados desta princesa. “Alguém precisa dizer que você vale como ser humano. Então, no correr da vida a gente precisa ter pessoas em que a gente se espelha, pessoas que a gente admira e que dão essa validação para a gente. Essa energia, esse perceber, esse se importar com as pessoas. E nessas pessoas que passaram por mim é que percebi o perfume de humanidade”.
Se esse aroma tão valioso é sentido pelo admirar, o que dizer da fragrância que exala Adenir Alves da Silva Carruesco depois de você, leitor, chegar neste ponto da leitura? Só pelo frasco, sobram notas de presença, determinação e ousadia, tudo muito compatível à pele de gente que torce por um final feliz. Neste conto de nobreza, o príncipe é o marido Marcelo com quem a princesa tem dois filhos e uma neta. E fica fiável saber que tantas coisas melhores ainda virão.
