
No coração do Instituto Penal de Campo Grande (IPCG), em Mato Grosso do Sul, um grupo de 22 internos tem vivido uma experiência rara no sistema prisional brasileiro: a construção de uma nova identidade através da música. O projeto “Som da Liberdade”, criado e coordenado pela policial penal e psicóloga Patrícia Gabriela Magalhães, completou um ano e meio de existência e já se consolidou como um símbolo de transformação, autoconhecimento e ressocialização dentro dos muros da prisão.

Com ensaios semanais e uma proposta pedagógica sólida, o projeto reúne coral e orquestra formados exclusivamente por reeducandos. A metodologia vai além da prática instrumental, abrangendo teoria musical, leitura de partituras projetadas em tela, técnicas vocais, construção de arranjos e discussões sobre temas sensíveis como violência doméstica, espiritualidade e reconexão com a própria história.
“A música consegue alcançar lugares onde a fala não chega. Com ela, trabalhamos respeito, organização, autoestima e reflexão. É um processo de reconstrução interna”, afirma Patrícia, idealizadora da iniciativa.
A transformação ficou ainda mais evidente com a chegada de L.A., um interno com mais de 20 anos de experiência em música, que assumiu o papel de maestro do grupo. A atuação dele tem trazido mais rigor técnico e profundidade aos ensaios, aliando sensibilidade e disciplina em um espaço pouco comum para isso: o cárcere.
“No começo, achei que seria apenas para ensinar violão. Mas logo percebi a potência transformadora do projeto. Vi homens se emocionarem, se reconectarem com a fé, com seus próprios sentimentos, com a vontade de viver”, conta o maestro.
O grupo ensaia músicas que fazem parte da memória afetiva de muitos brasileiros. Canções como “Imagine” (John Lennon), “Dias Melhores” (Jota Quest) e “Girassol” (Priscilla Alcântara e Whindersson Nunes) integram o repertório, que serve como trilha sonora de uma jornada de autoconhecimento e mudança. Atualmente, os internos trabalham um arranjo para “Camila, Camila”, da banda Nenhum de Nós – uma escolha proposital que permite tratar abertamente temas como a violência doméstica.
“Aqui, ninguém é analfabeto musicalmente. Todos aprendem teoria, aprendem a escutar, a respeitar o outro e a construir juntos. Isso é liberdade”, diz L.A.
Entre os participantes, histórias de superação se multiplicam. D. F. C., 28 anos, afirma que a música foi um dos fatores determinantes para repensar sua trajetória e aprender a valorizar princípios que antes não compreendia.
“Aqui dentro, o projeto me ajudou a entender a importância da hierarquia, da obediência; agora entendo de verdade o significado disso tudo”, afirma comovido.
Para J. P. A. J., de 40 anos, o contato com a música despertou sonhos antigos e reacendeu o desejo de reconstruir sua vida fora da prisão. “A música tem me ajudado a reorganizar minha vida, a refletir antes de agir, a sonhar novamente. Também quero aprender piano lá fora, e talvez unir minhas duas paixões: música e gastronomia”, compartilha.
O impacto da música vai além dos instrumentos e partituras. Em um ambiente onde muitas vezes predominam a tensão, a hostilidade e o silêncio forçado, o som coletivo de um coral ou o dedilhar de um violão adquirem outro significado: tornam-se veículos de expressão, pontes para o diálogo interno e externo, resgate de humanidade.
A orquestra do IPCG já conta com 22 internos, mas a meta é chegar a 45 participantes. Para isso, o projeto depende da doação de mais instrumentos musicais, como violões, violinos, teclados e flautas. A carência de recursos, no entanto, não tem impedido o avanço do projeto, graças ao engajamento dos profissionais envolvidos e ao comprometimento dos internos.
O “Som da Liberdade” integra o portfólio de ações da Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário), que desenvolve diferentes projetos de reinserção social no estado. Essas ações são coordenadas pela Diretoria de Assistência Penitenciária e visam oferecer alternativas reais de transformação para pessoas privadas de liberdade.
Para o diretor-presidente da Agepen, Rodrigo Rossi Maiorchini, a força do projeto está justamente na sua capacidade de humanizar o sistema e preparar os internos para um retorno mais consciente e construtivo ao convívio social.
“Estamos lidando com pessoas que, embora hoje estejam privadas de liberdade, um dia retornarão ao convívio social. Cada vida resgatada por meio da arte, da educação ou do trabalho representa um passo concreto na construção de uma sociedade mais segura e justa para todos”, afirma Maiorchini.
A mensagem que ecoa dos corredores do IPCG é clara: onde há arte, há caminho. E onde há música, há também a possibilidade de recomeço. O “Som da Liberdade” mostra que, mesmo em ambientes de dor e exclusão, a esperança pode ter melodia.
