
Em um Brasil em que a posse de terra frequentemente se cruza com histórias de lutas e ancestralidade, o caso do pecuarista de Mato Grosso do Sul, Dácio Queiroz, 65, se destaca. Alegando invasões contínuas em sua propriedade rural desde 1998 na cidade de Antônio João, a 400 km de Campo Grande, Queiroz expressa sua insatisfação já que a disputa envolve herança familiar de terras.

Hoje, desmotivado diante do atual cenário e de uma possível reintegração de posse, o pecuarista luta por uma indenização que compense décadas de disputa e angústia. “O que desejo é a indenização. Reconheço que o verdadeiro valor atual é o bem-estar daquela comunidade local. Isso só aconteceu devido à chegada de um grande número de indígenas de diferentes lugares, especialmente do Paraguai, do Amapá, e de todas as direções. Em Dourados agora, há muitos indígenas que não são da região”, explica o pecuarista ao jornal A Crítica.
Atualmente, cerca de 2.500 indígenas ocupam aproximadamente 8.000 dos 9.300 hectares reivindicadas na área em questão. Nessa extensão de terra, sobrou uma parcela de 400 hectares cultivada pelo pecuarista e seu irmão.
A fazenda em questão, que permanece registrada em nome de Queiroz, foi adquirida por seu pai em 1948, um tempo em que o Brasil incentivava seus cidadãos a colonizar terras devolutas. O imbróglio tomou novos rumos com a recente discussão sobre o marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), uma decisão que pode vir a ter reflexos diretos no desfecho do caso de Queiroz.
Como já noticiado pelo portal A Crítica, o STF declarou inconstitucional no dia 21 de setembro o marco temporal das terras indígenas. A tese jurídica criada por ruralistas proíbe demarcações de áreas que não estivessem ocupadas por indígenas no dia da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. Nove dos 11 ministros deram razão aos povos indígenas ao reconhecerem que a Constituição não prevê um critério de tempo para validar as demarcações. Os únicos favoráveis ao marco temporal foram Nunes Marques e André Mendonça.
Dácio narra que, na sequência de uma invasão inicialmente "singela", as ocupações foram ampliadas, gerando na perda de grande parte de sua fazenda para os Guarani Kaiowá.
“A fazenda foi ocupada em 1998, denominada como "retomada" pelos Guarani Kaiowá. O assentamento familiar se estabeleceu em 64, curiosamente o mesmo número que remonta a 1864. No ano de 1964, surgiu o município dentro do planejamento geral, abrangendo o distrito de Bela Vista e o de Ponta Porã de Antônio João, que acredito ser o distrito do Campestre. Lá, destinaram oito hectares para um grupo familiar de cerca de 30 indivíduos; uma área que acomodava confortavelmente tanto as crianças quanto os adultos”, explica. O pecuarista ainda detalha que o movimento atual tem até lideranças que resistem a chegar a um acordo.
Em setembro arrendatários deixaram fazendas na fronteira por conta das invasões - (Foto: Reprodução)
“Atualmente, essa liderança está com um rapaz conhecido como Louro. Entre os líderes, tem também o Augusto, o Damião e o Mariano. Estes indígenas são todos adultos agora. Imagine só: quando a invasão ocorreu, um bebê nasceu e hoje tem 25 anos. Esse indivíduo não tem dúvidas de que aquele lugar lhe pertence, que ele nasceu, cresceu e quer ser enterrado”, lamenta.
"Chamam de retomada", diz ele, destacando a ancestralidade e o crescimento populacional dos indígenas na região. O pecuarista também aborda o conflito entre a legislação e a realidade, citando o decreto presidencial que contradiz a sentença de primeira instância que reafirma ser ele o legítimo proprietário.
“Há quem diga que a documentação da minha propriedade, o título de posse, não tem valor algum e que, de fato, o terreno pertence aos índios, declarando o documento que eu tenho inválido. Não está escrito, mas é o que se deduz da conversa sobre a legislação. A Funai, ao designar o endereço e demarcar a área privada, já deveria estar pronta para arcar com os custos. Nós estamos aguentando essa situação há 25 anos, e durante todo esse tempo, ninguém veio até mim para tratar da indenização”, lamenta.
Ao longo de 70 anos, a família de Dácio se dedicou à criação e ao aprimoramento genético do rebanho, alcançando um total de cinco mil cabeças de gado no local que hoje está tomado pelos indígenas. A família chegou a produzir 40 mil touros, abastecendo o mercado pecuarista de MS. “A excelência do nosso rebanho atual é o resultado direto dos esforços pioneiros do meu pai, que investiu em genética avançada desde cedo, começando com a inseminação artificial em 1976. A linhagem pura deste gado teve origem em Minas Gerais em 1956”, relembra.
Em um gesto que sinaliza o bem-estar coletivo acima de seus interesses, Dácio se mostrou disposto em abrir mão de suas terras, desde que seja feita a devida indenização, além do uso produtivo e consciente do espaço.
O pecuarista Dácio Queiroz hoje briga por uma indenização justa - (Foto: A Crítica)
“Lá é tão bonito que sempre pensei que não deveria pertencer apenas a mim; deveria estar acessível a muitos, para que pudessem apreciá-la, contudo, de maneira planejada e estruturada. Imagino uma associação indígena, que promova o desenvolvimento de habilidades artesanais e culturais, talvez até incentivar o turismo de uma forma que beneficie a comunidade, ajudando-os a se afastarem de problemas com drogas e álcool”, opina.
Para ele, a atual situação é um jogo em que todos perdem. “Há 25 anos, 8% da área do nosso município está num impasse improdutivo e ainda assim, sob invasão, num conflito sem meios de resolução adequada. Falta a intervenção das instituições oficiais, a implementação de programas sociais que promovam melhorias. Enquanto essa assistência não chega, os indígenas vivem em condições precárias”, lamenta.
Dependendo da última quantidade de hectare que lhe resta, o pecuarista corre contra o tempo, já que tem até 10 de dezembro como o limite final para o plantio de soja. Caso o prazo não ser cumprido, trará perdas econômicas significativas
Saiba Mais
- VETO DE LULA
Marco temporal: bancada do agro faz pressão para acelerar votação de veto de Lula
- EM MS
Coronel David lidera criação de Frente Parlamentar para combater invasões de terras em MS
- POLÍTICA
CPI do MST ouve assentados sobre papel de líderes sem-terra e como são as invasões
- GOVERNADOR DE MS
VÍDEO: Riedel destaca avanços da Rota Bioceânica e analisa marco temporal e invasões do MST
“A expectativa é que as condições melhorem rapidamente para permitir o plantio dentro do intervalo ideal, evitando assim um ciclo improdutivo que se estenderia por seis meses. Precisamos agir com urgência, se não vou sair muito prejudicado financeiramente”, salienta.
Qual é o planejamento dos indígenas com vasta quantidade de terras? – O pecuarista questiona a sustentabilidade da ocupação indígena, levantando a questão de que os indígenas fariam com a extensão de terra que reivindicam.
“Primeiro, eles não têm máquinas, local e não conseguem financiamento. Então, o que eles vão fazer nessa área tão produtiva? Tudo o que acontece tira a oportunidade de produtores produzirem, gerar emprego e renda. Não sabemos a necessidade dos indígenas com toda essa área que está sendo ceifada”, alega.
Como solução, Queiroz propõe decisão mais clara e justa para todos os envolvidos e que promova a indenização adequada e permita tanto a ele quanto aos indígenas uma forma de continuar suas vidas com dignidade e segurança. Ele clama por atenção das autoridades: "Gostaria que alguém das autoridades ficassem por dentro dessa minha realidade para iniciar uma conversa de indenização. Está na hora, já que até a justiça quando demora muito, acaba sendo injusta comigo e até com os indígenas”.
Além de Antônio João, em MS segundo os dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), existe um total de 283,8 mil hectares em processo de demarcação sobrepondo 903 propriedades localizadas em 30 municípios. Deste total, 4 áreas estão delimitadas, 11 são declaradas. Vale lembrar que existem outros 17 pontos em MS em estudo, que podem aumentar ainda mais essa quantidade de área.
