
Mato Grosso do Sul dispõe hoje da segunda maior população indígena do país, representada por 07 etnias: Guarani (Kaiowá, Ñhandeva e Mbyá), Terena, Kadwéu, Kinikinaw, Atikun, Ofaié e Guató, segundo o Relatório Anual do IBGE. A cultura para estes povos assume uma importância inimaginável, pois através dela é que podem expressar os próprios costumes na sociedade não indígena. Segundo a antropóloga Marina Fonseca, o desvio de aspectos culturais das etnias se torna uma estratégia clássica e comum para a inserção dos indígenas na sociedade, causando a destruição total das tradições culturais. Dessa forma, a perda da identidade de uma comunidade indígena se distingue entre as gerações.

Como chegamos até aqui - Itamar Jorge Pereira, 50, é Terena da região de Taunay, comunidade indígena de Aquidauana. Com um sotaque de “índio” como ele mesmo diz, aprendeu a falar português apenas com doze anos de idade, o que não impossibilitou de cursar Letras e tornar-se professor da rede municipal de ensino de Campo Grande. Atualmente ocupa o cargo de técnico pedagógico e leciona no período noturno para jovens e adultos.
Já Alexandre Arévalos, 68, pertence à etnia Guarani-Kaiowá, nasceu no pantanal de Ladário, mas foi criado em Dourados, sul do Mato Grosso do Sul. Com uma sabedoria diferenciada, o vice-cacique da aldeia Água Bonita fala cinco idiomas indígenas, que o faz se orgulhar, mas ao mesmo tempo fica temeroso pela falta de prática. “Eu não tenho com quem falar porque ninguém entende… duas... já tá perdida porque você não tem com quem falar”, explica.

Eunice Poquiviqui, 75, é Terena e da região de Buriti, em Sidrolândia. Nascida em Campo Grande, a aposentada conta que a mãe veio grávida da aldeia, mas que sempre retorna por ter vários parentes próximos que residem no interior: “Sempre estou em contato, o telefone facilita muito”.
Viúva de um indígena boliviano, Eunice conta que os filhos sempre tiveram contato com a tribo: “Eu tenho uma nora, cuja família toda dela mora em Sidrolândia também. Ela veio para Campo Grande com objetivo fazer um curso e aí conheceu meu filho”. Sua família tem um laço muito forte com as raízes, o que se tornou uma missão evangélica que busca trabalhar com povos indígenas — antes da pandemia, cujo objetivo é visitar vários estados com tribos indígenas. “Minha nora é professora, e a outra é enfermeira, então sempre tem uma maneira de auxiliar nosso povo”, complementa. Como o esposo faleceu há pouco, Eunice diz agora esperar que os filhos levem-a para Sidrolândia em breve: “É muito bom estar na nossa terra, com o nosso povo”.
Educação - Estudar agora faz parte da comunidade. A maioria das aldeias já tem acesso à internet e às faculdades. De acordo com dados divulgados pela FUNAI — Fundação Nacional do Índio, o aumento da procura por cursos de ensino básico supera a marca de 500% em relação aos meses de janeiro/outubro de 2020. “Eu digo que o índio está começando a sair da toca, como se diz, para buscar seu estudo, sua faculdade e visar no avanço do conhecimento”, diz Eunice, ao contrapor que os jovens das tribos estão mais preparados para enfrentar o cotidiano da capital ao citar seu filho como exemplo: Mizael estuda Educação Física em São Carlos, interior de São Paulo, e se mantém com auxílios ofertados pela universidade. “Isso ajuda ele a estudar tranquilamente”, diz ela.
A aposentada comenta a sua relação com a educação: “Minha filha é formada em Direito, então, sei que há um espaço pra gente. Eu sei o que é lei, graças a ela”. Eunice faz parte de uma missão indígena e evangélica formada por uma diretoria indígena que falam o idioma e buscam manter a língua ativa, incentivando os indígenas a sempre conservar a sua origem: “Muitas pessoas confundem e falam que o evangelho tira a cultura do índio, que proibiu alguns costumes do indígena, mas isso não é verdade”.
Costumes e tradições - Eunice diz não perder as tradições. A comida e a dança sempre estiveram presentes em sua rotina, junto com seus filhos e netos. Todos participam da dança cultural da tribo terena quando visitavam a região, chegando até a se vestir com a vestimenta tradicional, além da ornamentação indígena para que não se perca a tradição de pais e avós. “Não vejo um desmanche cultural. Cada povo indígena busca preservar sua cultura como pode”, diz a aposentada ao citar a data de 19 de abril — comemorada o Dia do Índio — onde há festas, danças e exposições de trabalhos indígenas. “A cultura não são apenas trabalhos artesanais, há um vasto cenário”, complementa. “A gente sempre pode mudar de ideia, de casa, de emprego, mas não perdemos nossa identidade nesse processo porque temos raízes”.
Sobre a questão linguística, a aposentada comenta que não aprendeu a língua Terena por medo: “Eu não falo a língua só porque fui criada na cidade. Foi pela discriminação. Meu pai não queria que eu aprendesse e fosse rejeitada”. A discriminação é um dos grandes fatores para a diminuição de falantes do idioma Terena, o que também ocorre na cultura Guarani, comenta Itamar: “os pais também quase não fala o idioma com os filhos. Existe essa questão do preconceito, da gente passar vergonha”. E aos poucos a língua vai se perdendo com as novas gerações.

Na tradição Guarani, os alimentos são cultivados para serem consumidos pela própria tribo. “A cultura do índio Guarani é comer uma batata assada, abóbora assada, mandioca assada, uma pipoca feita da cinza, palmito, uma guariroba um coentro selvagem, alface do mato, um feijão, a couve, a cana nativa da nossa área em Dourados e o doce da laranja misteriosa, originária da região”, explica.
Outros componentes que fazem parte da cultura Guarani são os M’baraka, tipo de chocalho feito de porongo, uma espécie de trepadeira que produz o fruto muito utilizado para as cuias de chimarrão e como instrumento na tradição indígena. Outros produtos produzidos pela etnia são os colares de sementes e dentes do animal abatido, os arcos e flechas com ponta de ferro e os cocares de pena.
Lutas e preconceitos - De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, o número de candidaturas indígenas aumentou 88% em 2020. Eunice acredita que este aumento pode ser a resposta para a representação na política: “A intenção é que nós indígenas sejamos atendidos na medida do possível”. A aposentada compara com governos anteriores, onde reivindicações dos indígenas eram ignoradas: “É claro que isso é apenas um começo”.
“Eu creio que a discriminação racial se tornou maior”, diz Eunice ao apontar falhas de comunicação. “A gente é chamado de bugre, e ouve ‘olha a ‘bugrinha’. Sempre fui chamada assim, e já cheguei a me chatear”, mas complementa ao dizer que nos dias atuais, “[...] isso tem melhorado muito e o índio também tem superado esse desafio”.

Alexandre Arévalos cobra mais incentivo dos governantes para resgatar e manter a cultura indígena. “Nós queremos um espaço para restaurar a nossa cultura, afirma”. Cansados de esperar pelas promessas, o vice-cacique pretende lutar para que a União e a FUNAI garanta efetivamente o direito para manifestação cultural. “Eu vou levantar esta questão, eu vou procurar o CIMI — Conselho Indigenista Missionário, e voltar para o barco para navegar, eles não vão abusar”, defende.
O vice-cacique é enfático ao afirmar que existe “certa perda” da cultura indígena, ocasionada principalmente pelo abandono e falta de amparo pelo órgão responsável pela comunidade — a FUNAI. “Hoje não tem mais amparo, o índio hoje eles são tratados como um mendigo de rua”. Por este e outros vários motivos, o vice-cacique pretende fazer um grande movimento a partir de 2021 para reivindicar todos os direitos que os pertencem, explícitos na Lei nº 6001 de 1973, também conhecida como Estatuto do Índio. “Nós queremos levantar uma discussão sobre a nossa cultura, mas, com o ministro, o senador, o deputado federal, o deputado estadual, com o prefeito e com o governador para nós sabermos como é que pode ajudar a construir a nossa cultura aqui no Mato Grosso do Sul”, diz.
Para o professor Itamar Pereira, o governo deveria implantar políticas públicas específicas para a população indígena, no município de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, e até em nível federal. “Acho que tá na hora de criar o Ministério para População Indígena e uma Secretaria para Assuntos Indígenas”, completa. Na questão local, Itamar ainda denuncia a desativação do Conselho Municipal de Defesa do Direito dos Povos Indígenas. “Faz mais ou menos 8 a 10 anos que estamos sem o conselho, através dele nós fazíamos reuniões, seminários voltados à questão de resgate da cultura, ensino das danças aos jovens”, lembra.
De acordo com os entrevistados, o único movimento recente para a exposição da cultura indígena é a chamada Semana dos Povos Indígenas, realizada pelos municípios no mês de abril. Em relação aos espaços públicos, atualmente existe o Memorial da Cultura Indígena, localizado no bairro Tiradentes em Campo Grande, Aldeia Marçal de Souza com o espaço para vendas e comercialização de produtos indígenas e o Ginásio de Esportes em Dourados, para feiras e eventos. “Infelizmente, o Memorial não é administrado pela aldeia, nem pelo cacique ou pelo presidente da associação de moradores, mas sim, através da prefeitura pela Secretaria de Turismo. Eu vejo isso como um erro, porque não há participação dos índios na administração”, declara.
Com a colaboração de Letícia Monteiro.
