
O governo do Rio de Janeiro encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um plano detalhado para a reocupação de territórios atualmente sob domínio do crime organizado em comunidades do estado. O documento, com cerca de 200 páginas e ao qual o Estadão teve acesso, estabelece diretrizes de segurança, infraestrutura e políticas sociais para reduzir a influência de facções criminosas e milícias, além de reorganizar a presença do Estado nessas áreas.
A proposta foi elaborada por determinação do STF, em abril, durante o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, conhecida como “ADPF das Favelas”. A decisão da Corte cobra do poder público ações para controlar operações policiais em comunidades e diminuir a letalidade decorrente dessas intervenções.
O envio do plano ocorre quase dois meses após a operação policial no Complexo da Penha, que resultou em 122 mortes e entrou para a história como a ação mais letal já registrada no país, episódio que ampliou a pressão sobre o Estado por mudanças na política de segurança pública.
Zona oeste será ponto de partida - O projeto-piloto da reocupação deve começar na zona oeste da capital fluminense, abrangendo as comunidades da Muzema, Rio das Pedras e Gardênia Azul. A escolha foge do padrão adotado em políticas anteriores, que priorizavam regiões com índices mais elevados de violência letal.
Segundo o governo estadual, a estratégia aposta em áreas consideradas de menor criticidade, mas com alto risco de expansão do controle criminoso. A avaliação é de que intervenções nesses territórios reduzem a probabilidade de confrontos armados, diminuem mortes em operações policiais e evitam que disputas evoluam para conflitos urbanos de grande escala.
Relatórios de inteligência citados no plano apontam que a região escolhida é classificada como território em disputa, e não como área totalmente dominada por grupos criminosos. O governo sustenta que isso amplia as chances de êxito da reocupação, com menor exposição das forças de segurança e da população civil.
No detalhamento por comunidade, o documento indica que, na Muzema, o domínio do Comando Vermelho é considerado recente e ainda em fase de consolidação. Em Rio das Pedras, a presença de milícias é descrita como historicamente voltada à exploração econômica, com menor registro de confrontos armados. Já a Gardênia Azul aparece como área de transição, com influência fragmentada de diferentes grupos.
Avanço do crime organizado - O plano reconhece a expansão acelerada de facções e milícias na região metropolitana do Rio ao longo das últimas duas décadas. Dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF) e do Instituto Fogo Cruzado mostram que o número de pessoas vivendo sob controle ou influência desses grupos cresceu 59% entre 2007 e 2024.
Atualmente, cerca de 4 milhões de moradores, o equivalente a 34,9% da população da região, vivem submetidos a regras impostas por organizações criminosas. Em 2007, esse contingente era estimado em 2,5 milhões de pessoas.
Essa presença se estende por áreas dominadas por facções do tráfico de drogas, como Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA), além de milícias que avançaram por municípios da região metropolitana, incluindo Duque de Caxias, Magé, Belford Roxo, Nova Iguaçu e Queimados.
Bases policiais e serviços permanentes - De acordo com o documento enviado ao STF, a reocupação envolve a realização de operações policiais chamadas de “operações de retomada”, que poderão contar com apoio de forças federais e das Forças Armadas. Após essas ações, estão previstas bases policiais com funcionamento 24 horas, com foco em policiamento comunitário.
O plano também prevê a instalação de guarda municipal comunitária, postos da Ouvidoria e da Defensoria Pública, além de espaços destinados à Justiça e ao Ministério Público. Outro ponto destacado é a formação de lideranças comunitárias, responsáveis por estabelecer canais formais de diálogo entre moradores e o poder público.
Riscos e limitações - Apesar do tom técnico, o plano reconhece riscos relevantes. Entre eles estão mudanças rápidas no controle territorial, possíveis reações armadas de grupos criminosos e falhas de coordenação entre órgãos estaduais e municipais.
O documento também alerta para o risco de frustração da população caso a presença do Estado não resulte, de forma concreta, em melhorias nos serviços públicos, na infraestrutura e nas condições de vida. Experiências anteriores, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), são citadas de forma indireta como exemplos de iniciativas que falharam por falta de continuidade, governança e integração entre políticas sociais e ações de segurança.
Embora atenda à exigência do STF ao apresentar um cronograma geral, o plano não estabelece datas específicas para cada etapa. A implementação será dividida em fases, como diagnóstico, planejamento tático, execução progressiva e monitoramento, com prazos a serem definidos conforme a realidade de cada território. O início da reocupação está previsto para o primeiro trimestre de 2026.
Na decisão que determinou a elaboração do plano, o STF estabeleceu que a reocupação deve contar com alocação obrigatória de recursos federais, estaduais e municipais. O relatório, no entanto, não detalha o custo total do programa.
O acompanhamento das medidas ficará sob responsabilidade do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) por um período inicial de dois anos, o que cria um prazo indireto para avaliação dos primeiros resultados.
Cinco eixos de atuação - O plano está organizado em cinco eixos principais: segurança pública e justiça, com foco em inteligência, controle do uso da força e integração entre polícias; desenvolvimento social, com ampliação de serviços de assistência, educação e políticas para a juventude; urbanismo e infraestrutura, incluindo regularização territorial, saneamento e mitigação de riscos ambientais; desenvolvimento econômico, voltado à formalização da economia local e ao combate a atividades ilegais, como o mercado imobiliário clandestino; e governança e monitoramento, com definição de responsabilidades, indicadores de desempenho e acompanhamento institucional.

