
Com a segunda maior população indígena do Brasil, Mato Grosso do Sul detém outros registros expressivos em relação à violência contra mulheres, sobretudo às indígenas. Em muitos deles, o abusador é alguém próximo às vítimas nas aldeias. Porém, ao contrário do que muitos pensam, a questão cultural indígena não está atrelada a qualquer caso de violência, sendo, inclusive, repudiados entre os membros das comunidades indígenas.

De acordo com o art. 5º da Lei Maria da Penha, violência doméstica e familiar contra a mulher se qualifica como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
Esse tipo de violência é uma realidade nas comunidades indígenas. Em razão das particularidades culturais de cada etnia, os casos contra as mulheres indígenas devem ser observados dentro do ponto de vista das tradições das comunidades. De acordo com a psicóloga social, coordenadora de projetos e ações temáticas da Subsecretaria de Políticas para a Mulher, gestora administrativa da Casa da Mulher Brasileira (CMB) de Campo Grande, Márcia Paulino, os casos são tratados no âmbito da Lei Maria da Penha, que deve ser aplicada a partir da autodeterminação das mulheres indígenas, ou seja, considerando o que as próprias vítimas e suas comunidades desejam. “A partir de então é importante que as políticas públicas possam chegar até essas mulheres, informando sobre seus direitos e mostrando os caminhos para acessá-los”, explica.
A cada ano, mais mulheres indígenas são violentadas em Campo Grande. É o que aponta levantamento da CMB da Capital, que atendeu, no período de janeiro a junho de 2021, 10 mulheres indígenas, 50% a mais quando comparado com o mesmo período de 2020, ano em que atendeu cinco mulheres indígenas.
Comparativo da violência contra mulher indígena entre 2020 e 2021 - (Foto: Larissa Adami e Victória de Oliveira)
Dados do Anuário de Segurança Pública de 2020 apontam que o Estado, além de liderar os casos de homicídios em 7,8, também é primeiro no ranking sobre crimes sexuais, com uma taxa de 68,9 e feminicídios em 3,6 por 100 mil mulheres. Ainda que Mato Grosso do Sul seja líder nas denúncias nacionais, os números são inexpressivos quando comparados a mulheres não-indígenas.
Segundo Márcia Paulino, que também acompanha psicologicamente as vítimas de agressão, são vários os motivos que levam as mulheres a não denunciarem. “Medo, vergonha, preocupação com os filhos, dependência financeira ou emocional, ameaças, falta de uma rede socioassistencial e familiar de apoio, medo do julgamento, questões religiosas, crença ou esperança de que o agressor vai mudar de comportamento, dentre outros. Um outro fator é o ciclo da violência, que é um levantamento o qual aponta que a escalada de violência dura em média de 7 a 10 anos até que a vítima decida procurar ajuda”, pontua.
Nacionalmente, o Anuário apresenta baixos índices em relação ao grupo quando comparado à mulheres brancas, negras e amarelas. Entre as vítimas de feminicídio, cerca de 2% eram indígenas. Crimes de estupro e estupro de vulnerável correspondem a 3%. Essa situação acarreta na falta de atenção da sociedade para a questão por apresentar números de menor impacto que, consequentemente, são negligenciados.
Gráfico mostra índices de violência contra mulheres brancas, negras, amarelas e indígenas - (Foto: Larissa Adami e Victória de Oliveira
No último dia 9, o caso de Raíssa da Silva Cabreira trouxe à tona uma maior visibilidade à luta indígena contra violência. O corpo da jovem foi encontrado em uma pedreira desativada, próximo da aldeia de Bororó, em Dourados. A menina teria sofrido estupro coletivo por membros da própria comunidade sob efeito de bebidas alcoólicas, as quais foi obrigada a ingerir. Raíssa gritou continuamente por socorro. Depois de um tempo, foi ouvida pelo tio que, em vez de prestar ajuda, teria se juntado ao grupo.
O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde aponta que, entre 2007 e 2017, foram registradas 8.221 denúncias de casos de violência contra mulheres indígenas. Em um terço deles, o agressor é uma pessoa próxima. História que se repete no caso da jovem.
Apontamento mostra que pessoas próximas são responsáveis por um terço da agressão - (Foto: Larissa Adami e Victória de Oliveira)
Raíssa foi jogada em um penhasco de 20 metros após ameaçar denunciar os autores do crime, três adolescentes, que foram encaminhados a uma unidade socioeducativa, e dois adultos, direcionados ao presídio estadual de Dourados, um deles o tio, que foi encontrado morto no local dias depois. Em depoimento, o homem de 33 anos confessou praticar abusos contra Raíssa desde quando ela tinha 5 anos.
A violência cometida contra a jovem foi citada pela líder indígena Sônia Guajajara ao pedir respeito pelas mulheres indígenas. "Parem de matar o corpo e futuro de nossas crianças e jovens. Exigimos justiça", escreveu em seu Twitter. Ainda na plataforma, critica as autoridades pela pouca visibilidade de casos de violência praticados contra crianças das comunidades. “O silêncio brutal. Diante do estupro e assassinato de meninas indígenas”, em referência ao caso de Daiane Kaingang, assassinada no Rio Grande do Sul.
Hoje, dia Internacional dos Povos Indígenas, recebemos mais uma notícia triste que mata parte de nós. Semana passada foi Daiana Kaingang brutalmente assassinada esquartejada, hoje Raissa Guarani Kaiowá, parem de matar o corpo e futuro de nossas crianças e Jovens. Exigimos justiça pic.twitter.com/Ps4DV2Wi4v
— Sonia Guajajara (@GuajajaraSonia) August 9, 2021
O depoimento de Sônia exemplifica os laços de familiaridade presentes na população indígena. A estudante de jornalismo e residente da Aldeia Buriti, em Dois Irmãos do Buriti, Dhessy Veron Bernardo, explica que a comunidade toda é afetada pela violência. “A violência não atinge só a vítima mas a todos os integrantes da comunidade. Costumamos dizer que somos parentes, sempre um pelo o outro, e o que acontece com uma família vai refletir nas outras. Não é cada um por si. O núcleo familiar dos purutuye (não-indígenas na língua terena), por exemplo, não é tão próximo e íntimo como o da cultura indígena”, destaca.
"Não é cada um por si. O núcleo familiar dos purutuye, por exemplo, não é tão próximo e íntimo como o da cultura indígena" Dhessy Veron Bernardo, estudante de jornalismo
Segundo a advogada, reforçar esse aspecto é necessário para que as comunidades indígenas tenham seus direitos respeitados. “É muito importante que a gente tenha toda a cautela do mundo ao tratar sobre esses povos indígenas, a respeito da violência, principalmente, para que isso não se torne um estopim para proliferar ainda mais o racismo, que já é tão latente contra esses povos aqui no nosso Estado”.
As redes sociais são o ambiente mais fácil de se encontrar falas de ódio a etnias indígenas por diversos motivos, ressalta Victória Cheuiche. No início do ano, por exemplo, a vacinação de comunidades foi um pontapé para que comentários racistas fossem feitos em massa nas redes sociais. O Ministério Público Federal (MPF) abriu inquérito em fevereiro para investigar postagens ofensivas e discriminatórias contra indígenas sul-mato-grossenses em uma notícia do dia 18 de janeiro, que anunciava a chegada das primeiras doses da vacina contra Covid-19 no Estado.
Para os procuradores responsáveis, “a repetição do argumento de que ‘índio só dá despesa, não trabalha, não produz e não paga imposto’ incita a discriminação e o preconceito étnico contra os povos indígenas. Liberdade de expressão não abriga o discurso de ódio e a intolerância, tampouco o preconceito étnico e a perpetuação de estereótipos”.
Ainda sobre a questão cultural, a professora Ana Sueli lamenta como o estereótipo racial afeta as mulheres da comunidade. “Como liderança, participo junto de outras mulheres daqui em vários encontros com outras etnias e comunidades. Não foram poucos os relatos de violência citados, mas que não posso reproduzir pois são coisas íntimas das vítimas. Infelizmente, sempre ouvimos que a violência contra nós é algo normal e cultural. Somos agredidas, estupradas e assassinadas, isso não pode ser encarado como algo esperado pelos indígenas. Por isso levantamos a bandeira pela nossa sobrevivência e tentamos apoiar, sempre que podemos, umas às outras”.
“Infelizmente, sempre ouvimos que a violência contra nós é algo normal e cultural. Somos agredidas, estupradas e assassinadas, isso não pode ser encarado como algo esperado pelos indígenas” Ana Sueli Firmino, líder do Conselho Terena e professora da educação básica
Numa sociedade com valores patriarcais bem definidos, mulheres sempre estiveram sujeitas à violências de todos os gêneros. Desde os tempos da colonização brasileira, sabe-se que mulheres indígenas foram inferiorizadas e principais alvos de violência sexual. A psicóloga Márcia Paulino esclarece como o tratamento racial com os primeiros povos brasileiros continuam a influenciar o ciclo de brutalidade contra elas no cenário atual.
“Não apenas a vulnerabilidade atribuída a elas, como também foi enraizado o sentimento de superioridade do colonizador, que deixou suas marcas na cultura brasileira, e ainda vê as mulheres indígenas como objetos sem dignidade humana, sobre as quais possuiriam direito de posse. Além disso, no Brasil, elas ainda não têm acesso aos espaços de representatividade para transformar a sua realidade numa sociedade que não respeita sua memória e autodeterminação, não descolonizou seu pensamento e seu sentimento de superioridade, o que contribui para a manutenção das violências contra as mulheres indígenas”, aponta.
Com um histórico de desigualdades e a necessidade urgente de mais participação feminina, a aldeia Buriti transformou a educação não-índígena a seu favor. A professora Ana Sueli informa como sua profissão é reconhecida pela comunidade e a importância desse espaço de fala. “A escola veio de goela abaixo para nós como forma de educação purutuye. O que era para ser algo diferente dos costumes, como ato de civilização, se tornou uma instituição de força pois, por meio dela, aprendemos sobre os nossos direitos e o fortalecimento de novos pensamentos igualitários entre os gêneros. Nosso cacique viu a importância de ter professores para ajudar a comunidade, sendo eu a primeira delas aqui. Diferente da maioria masculina de anos passados, o corpo docente de hoje possui um equilíbrio de homens e mulheres”.
A professora Ana Sueli, à esquerda, realiza trabalhos de educação dentro da Aldeia Buriti - (Foto: Arquivo Pessoal)
Apesar de ser realizado a cada década, o Censo 2020 foi adiado em razão da pandemia da Covid-19 no Brasil. Vale ressaltar a fragilidade que esses estudos sofrem. A redução orçamentária de 96% desta pesquisa é uma realidade, a qual pode trazer impactos para políticas públicas destinadas a indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais no país. O corte, determinado pela Comissão Mista Orçamentária (CMO) do Congresso Nacional no final de março, reduz de R$ 2 bilhões para R$ 71 milhões, o que, segundo nota divulgada pelo IBGE, “pode inviabilizar a realização da pesquisa''.
Assistência - O Censo de 2010 foi o primeiro a abordar a questão a respeito do pertencimento étnico-racial dos indígenas no questionário básico, além de ter sido pioneiro na declaração da etnia e língua falada pela mulher indígena em suas residências. Assim como o Instituto, órgãos e entidades estaduais trabalham para colaborar com a cultura e segurança dos indígenas.
A elaboração de cartilhas e vídeos educativos foi uma maneira encontrada pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) para auxiliar mulheres indígenas a respeito das denúncias de agressões físicas, psicológicas, morais e patrimoniais que podem ser acometidas nas aldeias. Na série de 10 vídeos em Guarani intitulada “Kunhã Kuery! Nhãmbopaha Jeiko Asy, significa, em Guarani, Mulher! Chega de Violência”, disponível no canal do TJMS no YouTube, as comunidades indígenas possuem acesso a informações relativas tanto a denúncias e redes de atendimento, quanto aos tipos de violência contra mulher existentes.
O Governo do Estado, por meio da Subsecretaria de Políticas Públicas para Mulheres, realiza, também um trabalho de assistência à mulher indígena, por meio de apoio e incentivo a ações locais de conscientização sobre seus direitos e da comunidade em parceria com os Organismos Municipais de Políticas para Mulheres (OPMs), regidos de líderes indígenas.
Ainda, algumas aldeias possuem projetos da Polícia Civil para atendimento às mulheres em situação de violência, como é o caso de Dourados, que desde 2017 possui mutirões de atendimento nas aldeias proporcionados pela Delegacia de Atendimento à Mulher (DAM), para tornar mais fácil os procedimentos de colheita dos depoimentos e a oitiva das testemunhas.
Denúncia - Mulheres violentadas ou que sentirem ameaçadas e coagidas podem se dirigir a uma Delegacia de Polícia Civil ou uma Delegacia de Atendimento à Mulher ou buscar os canais de denúncias pelo telefone, respectivamente, 190 e 180, ou canais de atendimento on-line, como a aba “B.O. ONLINE - DELEGACIA VIRTUAL”, ou pelo aplicativo MS DIGITAL, no ícone Segurança.
Quem procurar por município:
Endereços e telefones de Delegacias próximas às localidades citadas - (Foto: Larissa Adami e Victória de Oliveira)
Campo Grande: Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam)
Endereço: Avenida Brasília, s/n – Jardim Imá
Contato: (067) 2020-1300 / (067) 2020-1319 / 1deam.cg@pc.ms.gov.brDourados: Delegacia de Atendimento à Mulher (DAM)
Endereço: Rua Francisco Feitosa Sobreira, 820 – Vila Bela
Contato: (067) 3421-1177 / damdourados@pc.ms.gov.brDois Irmãos de Buriti: Delegacia de Polícia Civil
Endereço: Rua Reginaldo Lemos da Silva, nº 597 - Centro
Contato: (067) 3243-1230 / dp.diburiti@pc.ms.gov.brSidrolândia: Delegacia de Polícia Civil
Endereço: Rua Alagoas, 760 - Centro
Contato: (067) 3272-9200 / 3272-9201 / dpsidrolandia@pc.ms.gov.br
