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18 de dezembro de 2025 - 03h03
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CASO VAQUEIRINHO

Carta de Natal de jovem morto em zoológico expõe vida de abandono e sonhos interrompidos

Escrita aos 17 anos, mensagem de Gerson de Melo Machado, o Vaqueirinho de Mangabeira, revela desejos simples por carinho, trabalho e acolhimento antes da morte trágica no zoológico de João Pessoa

17 dezembro 2025 - 18h45Ederson Hising
Jovem morre após invadir recinto de leoa em João Pessoa; animal permanece vivo.
Jovem morre após invadir recinto de leoa em João Pessoa; animal permanece vivo. - (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

Uma carta de Natal escrita por Gerson de Melo Machado, conhecido como Vaqueirinho de Mangabeira, voltou à cena pública quase dois anos depois de ter sido redigida e reacendeu o debate sobre abandono, saúde mental e responsabilidade do Estado. O jovem, diagnosticado com esquizofrenia e morto aos 19 anos após invadir o recinto de leões em um zoológico de João Pessoa (PB), registrou no papel, aos 17, desejos simples: ter a visita da mãe, receber carinho, conquistar um emprego e agradecer a quem o acolheu enquanto estava privado de liberdade.

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O texto, intitulado por ele de "Desejo do coração", foi divulgado na terça-feira, 16, pela conselheira tutelar Verônica Oliveira, que acompanhou a trajetória de Gerson dos 10 aos 18 anos. O conteúdo da carta comoveu redes sociais e profissionais que conviveram com o jovem, justamente por expor, de forma direta, o que ele enxergava como felicidade possível.

A última carta de Natal de Gerson

Segundo Verônica, a carta foi escrita quando Gerson ainda cumpria medida socioeducativa no Centro de Educacional do Adolescente (CEA), em João Pessoa. À época, os internos foram orientados a registrar, em uma carta, o que desejavam para o Natal. A mensagem de Gerson acabou se tornando, nas palavras da conselheira, um registro de despedida da adolescência.

"É a última carta, do último Natal de Gerson quando ainda era adolescente", explicou Verônica ao divulgar o texto. A carta permaneceu guardada até ser relembrada por uma das pessoas citadas por ele, a professora Margarete, que publicou a imagem do manuscrito em um grupo do qual a conselheira faz parte.

No documento, o jovem não pede presentes, bens materiais ou algo grandioso. Ele fala de sentimentos básicos que nunca sentiu que teve acesso de forma plena. Para Verônica, é justamente essa simplicidade que torna o conteúdo tão doloroso.

"Gerson não desejou nada material, não desejou nada impossível, mas parece que a vida dele foi feita de impossibilidades. Como doeu ler essa carta cheia de significados e recados. Espero que aqueles que jogaram Gerson na 'cova dos leões' leiam e consigam dormir", desabafou a conselheira.

O que Gerson escreveu no texto Desejo do coração

Na carta de Natal, Gerson fala diretamente sobre o que considera felicidade, sobre a falta da mãe e sobre o desejo de trabalhar na área ambiental ou cuidando de animais. Também agradece à equipe que atuava no CEA e à rede de Justiça que acompanhava seu caso.

Ele escreveu:

"Desejo do coração"

Eu queria ter uma grande felicidade que eu nunca tive, mas como Deus é maior um dia irei ter. Eu queria ter visita da minha mãe para ter carinho e amor. Desejo um emprego de polícia florestal ou veterinário.

Agradeço por estar privado de liberdade e ter encontrado conselho da professora Margarete, agentes, professor Tony, diretores Luciana, Marcos da Paz, o advogado, a juíza Antonieta. Eu desejo a todos um Feliz Natal e um próspero Ano Novo.

Gerson de Melo Machado

O fato de ele agradecer por estar privado de liberdade chama a atenção. Nas entrelinhas, fica a percepção de que, naquele contexto, ele se sentia mais protegido e escutado do que em boa parte de sua vida fora da instituição.

Infância marcada por diagnósticos e portas fechadas

Gerson nasceu em Mangabeira, bairro mais populoso de João Pessoa, e teve, desde cedo, uma trajetória atravessada por vulnerabilidade social, conflitos familiares e sucessivas internações. De acordo com registros oficiais e relatos de profissionais que o acompanharam, ele passou por diferentes tratamentos psiquiátricos dos 7 aos 18 anos.

A mãe e os avós também tinham esquizofrenia, segundo laudos citados pela conselheira tutelar. A mãe, com quadro descrito como grave, perdeu a guarda de Gerson e de outros quatro filhos, todos posteriormente adotados.

"Ela (a mãe) é viva, mas não tinha condições de cuidar dele. Ela tem uma esquizofrenia bem grave. E nem era mais mãe porque foi destituída", disse Verônica ao jornal Estadão, ao reconstituir a história do jovem.

Enquanto os irmãos conseguiram nova família, o caminho de Gerson foi outro. A conselheira relata que, na infância, ele teve a chance de ser adotado, mas essa possibilidade foi, segundo ela, boicotada pela forma como a instituição em que ele vivia tratou a questão de saúde mental.

"A instituição que ele estava bem na infância, quando a mãe foi destituída, informava que ele não tinha sido adotado porque tinha laudo de esquizofrenia. Mas criança não pode ter esse laudo. Nós advertimos a coordenadora porque ficou claro que os adotantes eram informados de que ele tinha esquizofrenia e ele não teve a oportunidade como os irmãos", afirmou.

Para Verônica, decisões e condutas ao longo da infância de Gerson acabaram reafirmando a marca da exclusão. A carta de Natal, escrita anos depois, seria mais um reflexo dessa sensação constante de não pertencimento.

Tratamentos, medidas socioeducativas e o apelido Vaqueirinho de Mangabeira

Entre idas e vindas, Gerson passou por diferentes serviços de saúde mental e espaços de ressocialização. Na adolescência, acumulou 16 passagens policiais por crimes diversos e experiências sucessivas com o sistema socioeducativo.

Foi nesse contexto que ele ganhou o apelido de "Vaqueirinho de Mangabeira". O nome fazia referência à sua origem no bairro e à forma como ele se apresentava – figura conhecida na região, com jeito de quem carrega mais história do que idade.

Apesar da ficha extensa, a conselheira insiste que Gerson não pode ser reduzido à lista de ocorrências. A carta, para ela, mostra um jovem consciente de seus limites, grato às pessoas que o orientavam e ainda capaz de sonhar com um trabalho formal, fosse como policial florestal, fosse como veterinário.

O sonho de domar leões e a morte no zoológico

No dia 30 de novembro, o desejo de Gerson de estar perto de grandes animais se transformou em tragédia. O jovem, que dizia sonhar em domar leões na África, escalou uma parede de aproximadamente seis metros de altura, passou pelas grades de segurança, subiu em uma árvore e conseguiu ingressar no recinto dos leões em um zoológico de João Pessoa.

Ao entrar na área restrita, foi atacado por uma leoa e não resistiu aos ferimentos. O parque foi fechado logo após o episódio e permaneceu sem receber visitantes até a decisão de reabertura, marcada para a quinta-feira, 18. A morte reacendeu discussões sobre segurança em zoológicos, protocolos de proteção e a própria compreensão sobre a condição psíquica de Gerson.

Laudos de perícia determinados pela Justiça indicaram que, além do diagnóstico de esquizofrenia, ele apresentava sintomas psicóticos ativos. Esses elementos já constavam no acompanhamento judicial, que também levava em conta o histórico familiar de transtornos mentais.

Decisão judicial antes da morte e questionamentos sobre responsabilização

Na semana anterior ao ataque no zoológico, a Justiça havia reconhecido, formalmente, a vulnerabilidade da situação de Gerson. Após ser solto no mesmo dia em que foi preso duas vezes, o Judiciário determinou encaminhamento urgente para tratamento psiquiátrico e solicitou a liberação de aposentadoria por incapacidade.

Na prática, era um reconhecimento de que ele não reunia condições plenas de autonomia, reforçando a necessidade de rede de cuidado robusta e contínua. A morte, ocorrida poucos dias depois, levantou questionamentos sobre o tempo de resposta das políticas públicas e sobre o quanto essas decisões efetivamente saem do papel.

Para Verônica, a imagem de um jovem com histórico de sofrimento psíquico grave dentro de um recinto de leões não pode ser tratada apenas como um ato isolado. A expressão que ela usa – "cova dos leões" – remete simbólica e literalmente às situações de risco às quais, na avaliação dela, Gerson foi exposto ao longo da vida.

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