
Aos 60 anos, a alagoana Quitéria Isidoro Carmo encontrou na confecção de bonecas artesanais uma forma de reconstruir a própria autoestima e ajudar outras mulheres a superarem dores silenciosas. Professora de artesanato na Casa da Mulher Paulistana, uma ONG localizada no Jardim São Bernardo, zona sul de São Paulo, Quitéria acolhe diariamente donas de casa em situação de vulnerabilidade emocional e social.

A história de superação começou após sua aposentadoria, aos 52 anos. Após três décadas trabalhando como auxiliar escolar, ela sonhava em aproveitar o tempo ao lado dos filhos. No entanto, ao se dedicar integralmente à casa, enfrentou um novo desafio: um sentimento de solidão invisível, comum a milhares de mulheres que se dedicam ao trabalho doméstico em tempo integral.
“Ficar presa me sugava. Fazia o serviço doméstico mil vezes. Nunca estava bom o suficiente”, relembra Quitéria. “No tempo em casa, me senti mais presa do que quando trabalhava fora. Não tinha tempo para mim”.
Solidão emocional: o apagamento do ‘eu’ - A experiência de Quitéria expõe uma realidade ainda pouco falada: a solidão emocional vivida por donas de casa. Segundo a psicóloga Talita Fabiano de Carvalho, diretora do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), essa solidão não é física, mas emocional e espiritual.
“É a ausência de si pela presença constante do outro. A mulher prioriza todos à sua volta e se apaga como indivíduo”, explica.
Essa situação, além de emocionalmente desgastante, é marcada por falta de reconhecimento social. “O trabalho doméstico não é visto como trabalho porque não há remuneração”, diz Talita.
A socióloga Helena Hirata, especialista em gênero e trabalho, aponta que o impacto é ainda mais intenso entre mulheres pobres, que não contam com apoio de profissionais como babás ou instituições especializadas. Já o psiquiatra Rafael Lopes destaca que quando a função de dona de casa é imposta, e não escolhida, os riscos de adoecimento emocional aumentam.
Entre os sentimentos mais comuns nesse cenário está a culpa. “A mulher se sente responsável por tudo de negativo que ocorre, mesmo quando não é verdade”, alerta Rafael. Ele recomenda psicoterapia para desconstruir essa culpa distorcida e ajudar a mulher a reencontrar sua identidade.
Outro fator preocupante é o isolamento. “Muitas passam o dia sozinhas, sem lazer, sem rede de apoio, sem contato social significativo”, observa o psiquiatra.
Talita reforça que as mulheres muitas vezes não verbalizam o que sentem. “Falam dos fatos, mas não dos sentimentos. Isso torna a dor ainda mais difícil de tratar”.
Foi em meio a esse cenário que Quitéria buscou apoio na Casa da Mulher Paulistana, uma ONG que oferece assistência psicológica, jurídica e social para mulheres da periferia. Lá, encontrou escuta, acolhimento e a oportunidade de recomeçar.
A transformação veio através do artesanato com bonecas, que se tornou uma ferramenta de expressão emocional e reencontro consigo mesma. “As bonecas abriram a minha mente e o meu coração”, conta Quitéria, hoje professora de artesanato no local.
Além das oficinas, a ONG oferece terapia individual, cursos de capacitação profissional e apoio a crianças e adolescentes. “Não adianta cuidar só da mãe se os filhos também precisam de suporte”, destaca a fundadora da instituição, Lúcia Brugnera.
Segundo ela, a maioria das mulheres escolhe os cursos como forma de buscar autonomia financeira e autoestima. “Quando saem de casa, aprendem algo novo e convivem com outras mulheres, a autoestima floresce. A capacitação é a cereja do bolo”, afirma.
Fala, escuta e redes de apoio - Na oficina de bonecas, Quitéria não apenas ensina técnicas manuais, mas também incentiva suas alunas a falarem abertamente. “As mulheres precisam dizer o que sentem. Fiquei muito tempo calada, dentro de uma bolha. Hoje vejo que compartilhar é parte da cura”, diz.
A história dela é um exemplo de como o autoconhecimento, o apoio psicológico e o trabalho coletivo podem transformar a dor em força. É também um lembrete de que políticas públicas e espaços de acolhimento são fundamentais para garantir que nenhuma mulher precise enfrentar o peso da solidão invisível sozinha.
