
A classificação do Haiti para a Copa do Mundo de 2026 encerra um jejum de 52 anos e resgata uma das histórias mais comoventes do futebol internacional: a ligação afetiva com o Brasil, construída em 2004, no amistoso que ficou conhecido como o “Jogo da Paz”. Em meio a conflitos internos, o país caribenho recebeu a seleção brasileira campeã do mundo, com estrelas como Ronaldo, Ronaldinho e Roberto Carlos, em uma partida que virou símbolo de esperança para uma população assolada por crises sociais e políticas.
O retorno haitiano ao Mundial acontece sob circunstâncias dramáticas. O país está mergulhado em um colapso institucional e humanitário, agravado após o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021. Atualmente, cerca de 90% da capital, Porto Príncipe, está sob controle de grupos armados, e não há mais voos internacionais regulares para o país. O cenário é tão crítico que o técnico da seleção haitiana, o francês Sébastien Migné, nunca esteve no Haiti.
Um treinador exilado e uma seleção espalhada pelo mundo - Sem poder viver no país, Migné montou a equipe a partir de dados enviados por dirigentes e do esforço para convocar jogadores de origem haitiana que atuam na Europa. Nomes como Jean-Ricner Bellegarde (ex-França sub-21), Josué Casimir (Auxerre) e Hannes Delcroix (ex-Bélgica) aceitaram o convite de defender o país natal dos pais.
As partidas como mandante são disputadas em Curaçao. “É impossível treinar no Haiti porque é muito perigoso. Normalmente moro nos países onde trabalho, mas não posso aqui”, contou Migné à revista France Football.
A memória afetiva do Haiti com o Brasil remonta a 18 de agosto de 2004, quando, em meio a uma missão humanitária da ONU liderada por tropas brasileiras, a seleção pentacampeã do mundo desembarcou em Porto Príncipe para disputar um amistoso inédito. A ideia partiu do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em articulação com o primeiro-ministro haitiano Gérard Latortue, que sugeriu que a presença da seleção poderia gerar um cessar-fogo temporário entre facções rivais.
Comandado por Carlos Alberto Parreira, o Brasil venceu por 6 a 0, com três gols de Ronaldinho, dois de Roger Flores e um de Nilmar. O público de cerca de 15 mil pessoas lotou o estádio Sylvio Cator, em uma das raras ocasiões de celebração coletiva no país. O jogo foi registrado no documentário O Dia em que o Brasil Esteve Aqui, lançado em 2005.
“Só quem estava lá viu como o futebol pode ajudar uma sociedade”, lembrou o ex-zagueiro Roque Júnior em entrevista ao Estadão. “Nós só fomos recebidos daquele jeito no Brasil depois de ganhar a Copa do Mundo. E lá era só um amistoso.”
Um laço que virou política internacional - A realização do “Jogo da Paz” foi um marco na política externa brasileira e rendeu à CBF o Prêmio Fifa Fair Play daquele ano. Cerca de 600 soldados brasileiros participavam da missão da ONU, inicialmente planejada para durar meses, mas que se estendeu até 2017, após o devastador terremoto de 2010, que matou mais de 200 mil pessoas.
Reportagens e documentários da época retratam o colapso social do país. Em 2016, a série Diários do Haiti revelou que crianças haitianas se alimentavam de “bolachas” feitas de terra, em meio à escassez generalizada.
Agora, com uma seleção formada por atletas da diáspora e sob a liderança remota de um técnico francês, o Haiti volta ao maior torneio do futebol mundial, após a única participação em 1974, na Alemanha, onde foi eliminado na primeira fase e sofreu 14 gols em três jogos.
Apesar da tragédia que segue em curso no território haitiano, a classificação à Copa representa um raro respiro de esperança. E, para os brasileiros, um lembrete de que o futebol pode ser mais do que um jogo — pode ser ponte, pode ser política, pode ser solidariedade.

