
A Prefeitura de São Paulo multou em R$ 190 mil um prédio localizado em frente ao Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, na região central da capital, por causa de um mural artístico inspirado na personagem Wandinha, da série da Netflix. A obra, criada pela artista Aline Bispo, foi considerada uma infração à Lei Cidade Limpa (14.223/2006), que proíbe o uso de arte urbana para veiculação direta ou indireta de conteúdos publicitários.

Segundo a administração municipal, a vistoria realizada no imóvel, localizado na rua Ana Cintra, no bairro Santa Cecília, concluiu que a pintura foi aplicada com o consentimento do edifício, o que o torna diretamente responsável pela intervenção. A notificação exige que a arte seja removida em até cinco dias. Caso a determinação não seja cumprida, novas multas poderão ser aplicadas a cada 15 dias.
A obra gerou repercussão nas redes sociais pelo caráter provocativo e pela presença marcante da personagem Wandinha Addams, interpretada por Jenna Ortega na produção da Netflix. Com fundo roxo e a personagem de braços cruzados, o mural traz a frase irônica: "Viaduto praia? Realmente fascinante" — uma alusão ao uso recreativo que parte da população faz do Minhocão aos fins de semana.
Embora a Prefeitura aponte que a peça fere as regras da cidade ao promover um produto comercial (no caso, uma série de TV), a artista Aline Bispo explicou, em suas redes sociais, que sua intenção foi política e estética. "Wandinha é uma personagem da qual gosto e me identifico, principalmente no desencaixe intencional em relação ao mundo", afirmou. Ela também destacou o uso simbólico das espadas de São Jorge no painel, elemento recorrente em sua obra, como forma de conectar a personagem a um contexto de latinidade.
Ainda segundo Aline, a ideia foi discutir a forma como imigrantes e famílias latinas são retratados ou tratados em sociedades estrangeiras, especialmente nos Estados Unidos, país de origem da personagem. “Adotei um tom político para a arte, costurando questões de identidade e pertencimento”, escreveu.
Apesar de a Prefeitura afirmar que a responsabilidade pelo mural é do prédio, a própria Netflix publicou em seu Instagram oficial uma foto da arte no início da semana. “Tão bom ver o humor contagiante da Wandinha tomando as ruas de São Paulo... A parte 1 da 2ª temporada estreia já na quarta-feira, dia 6 de agosto!”, dizia a legenda.
A postagem não menciona diretamente uma parceria comercial com a artista, mas associa a obra à estratégia de divulgação da nova temporada da série. Até o momento da publicação desta matéria, a Netflix não respondeu aos questionamentos da imprensa.
A reportagem também tenta contato com a artista Aline Bispo para esclarecer se houve contrato formal com a plataforma de streaming, mas não obteve retorno até o momento.
Em vigor desde 2006, a Lei Cidade Limpa foi criada com o objetivo de reduzir a poluição visual na capital paulista, proibindo a veiculação de anúncios publicitários em fachadas, empenas de prédios, muros e tapumes sem autorização prévia e regulamentação da Prefeitura. A norma também se aplica a grafites e murais que promovam, mesmo de forma indireta, produtos, marcas, logotipos ou serviços.
A Subprefeitura da Sé, responsável pela região central, explicou que, ao identificar conteúdo de caráter promocional no painel — ainda que por meio de uma obra artística —, a medida legal aplicada foi a autuação com base na legislação vigente.
“Após a aplicação da primeira multa, o autuado terá o prazo de cinco dias para remover a pintura. Caso não cumpra a determinação, novas autuações serão aplicadas a cada 15 dias”, informou a administração.
O caso reacende o debate sobre os limites entre arte urbana e publicidade. Especialistas em direito urbano e arte pública ressaltam que a legislação brasileira ainda tem zonas cinzentas ao lidar com murais que dialogam com a cultura pop ou produtos culturais, mesmo quando criados por artistas independentes.
“O problema está na associação da obra com a divulgação de uma série comercial. Mesmo que a pintura tenha valor artístico e autoral, a conexão com uma data de estreia e o uso promocional nas redes sociais da Netflix podem ser entendidos como publicidade disfarçada”, explica o urbanista e professor da USP, Leandro Franco.
Por outro lado, movimentos ligados à arte de rua criticam o que consideram uma interpretação excessivamente rígida da lei. “A Cidade Limpa tem papel fundamental, mas não pode ser usada para censurar ou punir manifestações artísticas que também têm função social e crítica”, argumenta a produtora cultural Cíntia Borges, ligada a coletivos de muralismo em São Paulo.
A reportagem não conseguiu localizar os representantes legais do prédio autuado e segue tentando contato com a Netflix para esclarecer se houve algum tipo de financiamento ou autorização para a realização da pintura.
Até o momento, também não há informações sobre eventuais recursos ou tentativas de negociação com a Prefeitura para manter a obra no local.
