
Pejotização é uma daquelas palavras que parece tecnocrática demais para o dia a dia. Mas basta olhar um pouco mais de perto para ver que ela está em todo lugar — em startups, em empresas de tecnologia, em redes de franquias, na TV, no marketing, nas clínicas de saúde e até nos salões de beleza. O nome difícil esconde um truque antigo: contratar uma pessoa como empresa, para evitar carteira assinada e encargos trabalhistas. Só que, em muitos casos, essa “relação empresarial” tem cara, roupa e rotina de um emprego comum.

O reflexo disso aparece com força nos números: foram 285.055 processos abertos em 2024 na Justiça do Trabalho pedindo o reconhecimento de vínculo empregatício, segundo dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST). É um aumento de 57% em relação a 2023. E só nos dois primeiros meses de 2025, mais de 53 mil novos casos já foram registrados. O tema subiu de 40º para 16º lugar entre os mais comuns na Justiça do Trabalho, em um universo de 1.881 assuntos diferentes.
A tendência é clara: a discussão sobre pejotização virou um dos grandes embates jurídicos da década. Mas agora, ela está temporariamente suspensa. No último dia 14 de abril, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu paralisar todos os processos em tramitação no País que tratam do tema — uma espécie de “pausa geral” enquanto a Corte não define, de uma vez por todas, se existe ou não vínculo de emprego quando uma pessoa é contratada como PJ.
Entre a CLT e o CNPJ - A discussão gira em torno de um ponto sensível do mundo do trabalho: quem é, de fato, empregado? A Justiça do Trabalho costuma olhar para os famosos cinco critérios: subordinação, pessoalidade, habitualidade, onerosidade e alteridade. Se estão todos presentes, há vínculo. Já o Supremo tem adotado uma visão mais flexível — e empresarial.
Desde a reforma trabalhista de 2017, que autorizou a terceirização da atividade-fim, o STF tem reafirmado que formas alternativas à CLT são válidas, inclusive com base na autonomia da vontade entre as partes. Em 2018, esse entendimento foi chancelado em julgamento de repercussão geral. Agora, com a nova suspensão, a Corte quer cravar um entendimento definitivo, com efeito para todos os tribunais do país.
O caso que levou à suspensão geral envolve a seguradora Prudential, mas a decisão vai muito além. Como foi reconhecida repercussão geral, qualquer decisão do STF valerá como regra para todos os processos semelhantes, independentemente da empresa ou do setor envolvido.
Uma pausa com consequências - Para o advogado Antonio Vasconcellos Junior, a decisão tem um lado positivo: traz segurança jurídica em meio à confusão de entendimentos. Afinal, o que se via era um cenário dividido: juízes do trabalho reconhecendo vínculos em massa, e empresas recorrendo ao STF para tentar reverter as condenações.
Mas o mesmo advogado reconhece o custo da suspensão: os processos ficam parados por tempo indeterminado, o que prejudica trabalhadores que esperam por uma decisão e empresas que ficam com possíveis dívidas sendo corrigidas pela Selic, hoje em 14,25% ao ano.
Outros especialistas temem que, ao decidir com repercussão geral, o STF esvazie ainda mais a competência da Justiça do Trabalho, tirando dela o poder de analisar cada caso. Mauricio Corrêa da Veiga defende que, mesmo com uma tese geral, a Justiça trabalhista deve continuar podendo verificar se houve ou não fraude.
O Supremo já decidiu? Na prática, muitos acreditam que o julgamento já tem um resultado antecipado. A maioria dos ministros — nove deles, segundo especialistas — já votou em outros processos negando o reconhecimento de vínculo. Apenas dois ministros costumam votar a favor dos trabalhadores nesses casos. “A Corte já sinalizou que vai manter esse entendimento”, diz o advogado Fabiano Zavanella.
A própria Prudential, em nota, afirmou que mais de 100 decisões individuais já validaram seu modelo de franquias e que uma decisão definitiva pode “racionalizar os recursos do sistema de justiça” e dar fim a uma discussão que, para eles, já está superada.
Mas para quem defende a análise individualizada, o risco é deixar de fora situações em que o contrato de PJ é, na verdade, uma camuflagem para o vínculo empregatício tradicional. O professor Cleber Venditti, do Insper, argumenta que contratos válidos, assinados por profissionais qualificados, não devem ser desfeitos apenas por parecerem com relações de emprego. Mas admite que há um vácuo de interpretação entre os dois tribunais.
Enquanto isso, os números não param de crescer. Só em 2024, o STF bateu recorde e recebeu 3.418 novas reclamações trabalhistas, 76% a mais do que no ano anterior. É o retrato de um Judiciário que não fala a mesma língua — e de um mercado de trabalho que ainda está tentando entender os limites entre liberdade contratual e precarização.
No meio disso tudo, estão os trabalhadores que prestam serviço todos os dias, batem ponto sem bater ponto, seguem ordens sem ter chefe no papel e vivem de CNPJ — muitas vezes sem saber o que isso realmente significa.
