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Foi circulando de carro pelas ruas da pequena Ávila, cidade ao norte de Madri, que Guilherme Arantes, ao sintonizar a Rádio e Televisão Espanhola, ouviu a programação que tocava músicas barrocas e renascentistas. No fim de 2019, Guilherme partiu para esse município espanhol cercado de muralhas para estudar justamente os compositores de sonatas e tocatas. Entre eles, o seu preferido: Domenico Scarlatti - o que compôs sonatas para cravo, instrumento que o pai de Guilherme tocava -, além de Georg Friedrich Händel e François Couperin.

Olhando a paisagem e escutando as composições de seus mestres, veio à lembrança o menino de 14 anos apaixonado por Romeu e Julieta de Franco Zeffirelli, que usava o cabelo com o mesmo corte do ator Leonard Whiting, o protagonista, e tentava escapar das provocações dos meninos mais velhos do colégio.
Entretanto, em determinado momento, que coincidiu com a chegada da pandemia e um problema na coluna cervical que o atormenta até hoje, Guilherme abandonou o propósito que o levou à Espanha e começou a compor. Antes disso, fez um giro pelo país. Foi a lugares como Pontevedra, na Galícia, terra dos antepassados de sua mulher, a baiana Márcia Gonzalez, e ficou encantado, segundo ele, pela riqueza espiritual e histórica da região.
Passou pela Andaluzia para visitar Algeciras, terra do guitarrista de flamenco Paco de Lucía (1947-2014), antigo companheiro de camarim em noites de sessão dupla na casa de espetáculos Canecão, no Rio. "Pirei com a Espanha, com sua coisa sanguínea e as histórias que envolvem a fé cristã, o judaísmo e o islamismo. Aqui em Ávila as cruzadas passaram. Há a história de que Santiago de Compostela esteve por aqui. Eu fui me envolvendo com um sentimento. Não é apenas saber, fazer turismo ou ter fé. Não é nada ligado à Igreja. É uma forte conexão que se deu com esse lugar", diz.
Esses temas estão no álbum de inéditas que Guilherme lança hoje, 28 - dia em que completa 68 anos -, batizado de A Desordem dos Templários. O disco foi gravado por ele em um pequeno estúdio que montou em sua residência espanhola. Foi desse estúdio que ele conversou por vídeo com o Estadão.
A temporada no país - que era para ser de apenas quatro meses, mas já dura mais de um ano - também está ligada a um sentimento que Guilherme descreve como "desilusão da alma". O compositor se sentia deslocado, sobretudo olhando que, de acordo com ele, desde os anos 1990, a música se tornou pragmática, profissionalizada demais. Puro entretenimento.
Uma espécie de estopim foi a canção Nossa Imensidão a Dois, que está no álbum. Feita sob encomenda para a cantora Wanderléa, que não a gravou, foi lançada em uma versão de voz e piano pelo próprio Guilherme, em 2018. "Era para ser um hit. Tinha uma estrutura para tocar no rádio. Uma introdução de 15 segundos, a primeira parte de 1 minuto e entrava em um refrão de amor matador. Nada aconteceu", conta. "Caí na real que a nossa geração não apita mais. Nossa referência de beleza musical não vale mais nada. O mundo virou um grande megafone, cheio de lugar de fala. Bob Dylan lança disco, ganha prêmio, mas não tem aquela força igual a Hurricane (canção de 1975) tocando no rádio direto. Pensei: será que alguém se interessa por um cantor e seu piano com canções angustiadas? Foi uma depressão de carreira."
No mesmo ano, Guilherme entregou a Gal Costa a canção Puro Sangue (Libelo do Perdão), que a cantora gravou no álbum A Pele do Futuro. Ele também previa um sucesso. A música não entrou no show originado do disco e os hits foram Palavras do Corpo (Silva/ Omar Salomão) e Sublime (Dani Black).
Um dos pontos-chave para a temática do disco está mesmo na música A Desordem dos Templários - a mais hermética das 11 canções. Na letra, Guilherme fala em "códice dual/ na lança do destino/ crava o córtex cerebral". Ele explica. "A civilização humana tem um paradigma a ser quebrado que é a libertação de uma raiz animal que impõe uma codificação dualista do universo. É o alto/baixo, quente/frio, claro/escuro. Isso nos leva a um conflito eterno. São extremos. Há uma ausência de leveza, do lúdico. Está todo mundo brigando na latrina. Mas isso é o lixo da história. Não vai vigorar. A humanidade é leve, tem compaixão."
Os primeiros versos e a capa divulgada nas redes sociais do compositor - ela traz um cavaleiro templário e o cálice do Graal caído no chão - acenderam essa mesma radicalização condenada por Guilherme. Ele foi acusado de ser barroco demais e de abrir espaço para a violência das Cruzadas promovidas pela Igreja Católica. "Não estou falando de religião. Quero ir na gênese das distopias, no ovo da serpente, e desmanchar o que esperam de nós sobre rancor e mágoa", afirma o compositor, que chama atenção para um detalhe geek da ilustração feita pelo artista Daniel Miguez: o símbolo do cavaleiro é o do Nacional Kid, série japonesa dos anos 1960.
Capa de 'A Desordem dos Templários' (Foto: Esquinas)
Guilherme confessa que "delirou livremente" ao escrever as canções do disco, até por conta dos fortes medicamentos que estava tomando para aliviar as dores causadas pela cervicobraquialgia que o deixou de cama. Porém, mesmo sem os anti-inflamatórios, no momento em que escreve as letras, ele diz acessar algo que não sabe bem explicar - e que o acompanha desde sempre.
É uma porta que se abre e o coloca em contato com um mestre que não tem forma nem religião. "É algo que dou passagem, sorri para mim. Teve uma noite que escrevi atravessar galáxias e confirmar que existe um Deus (trecho da letra de A Cordilheira). Não é privilégio meu. Igual a Chico Buarque quando escreveu pra mim basta um dia (letra de Basta um Dia). Veio de onde?", diz, ao lembrar que aconteceu o mesmo com seu hit Amanhã, de 1977, que ele fez em meia hora, passeando pelas curvas da Estrada de Santos.
Como mostra a introdução da faixa de abertura, El Rastro, o álbum traz, entre suas sonoridades, o rock progressivo. A principal referência é Tubular Bells, disco de estreia do compositor inglês Mike Oldfield, de 1973, mesma época do grupo Moto Perpétuo, do qual Guilherme fez parte. A faixa instrumental Kyrie, que fecha o disco, é outro exercício do gênero. "O progressivo foi assassinado pela crítica nos anos 1970. Era chato? Era. Era pedante? Era. Era aristocrático? Era. Mas tinha momentos sublimes, como Emerson, Lake & Palmer na música Jerusalém ou no disco Close to the Edge, do Yes. O punk veio implodir essas catedrais."
Guilherme diz que A Desordem dos Templários é um disco de afetos e o coloca em algo que diz perseguir ser: compositores como Francis Hime e Taiguara. "Sucesso é para quem quer mais dinheiro e notoriedade. Eu já tive isso. O mundo foi generoso comigo. Aproveitei minha mocidade, minha aparência física para ser paixão das meninas pobres do Brasil (Guilherme se emociona). É fácil enganar as elaborações intelectuais, mas o povo você não engana."
